No Rio de Janeiro dos dias de hoje, a jovem Alice, uma estudante universitária de cabelo azul, recebe a visita inesperada de uma tia de Pernambuco. Entre as “coisas típicas lá do Norte”, que a mulher mais velha oferece como “lembrancinhas” a Alice e sua mãe, chega uma relíquia de família: um véu de missa que pertenceu a uma antepassada rendeira e que, no cumprimento da tradição, deve ser transmitido à mulher mais jovem da família. Para a personalidade feminista de Alice, aquele véu é anacrónico, mas tal perspectiva muda quando se descobre que contém uma mensagem escondida, cuja compreensão obriga a viajar até à pequena cidade pernambucana de Bom Retiro, no ano 1918. Através da alternância cronológica entre estes dois tempos, a autora brasileira Angélica Lopes conta-nos, em “A Maldição das Flores” (Singular, 2004), a história de sete gerações de mulheres e da forma como a renda transformou várias vidas.
Flores é aqui um nome de família, um apelido de origem popular, herdado do jardim florido de uma casa habitada por mulheres que vivem sob o estigma de uma maldição cigana, a qual determina que todos os homens que se juntem à família, por casamento ou nascimento, não tardem a partir, de uma forma ou de outra. É na casa das Flores que se reúne o grupo local de rendeiras. A renda, que outrora era apenas um passatempo para as tardes quentes, tornou-se uma fonte de rendimento importante, a partir do momento em que uma peça chegou à capital e recolheu a admiração de damas de boas famílias, que começaram a fazer encomendas. Até então, o dinheiro era um assunto exclusivo de homens – maridos, pais ou irmãos, que trabalhavam a terra e cuidavam do gado, para quem as mulheres eram “apenas quem lhes tirava a mesa ou quem ordenava que outras mulheres lhes tirassem a mesa”. Neste mundo, onde o lugar das mulheres é determinado pelo sobrenome dos homens, registado nas certidões de nascimento e casamento delas, Inês Flores – membro de uma família de mulheres que aprenderam a viver sem homens – compromete-se a ajudar a amiga Eugénia, obrigada a casar, aos 15 anos, com o Coronel Aristeu, “chefe político e homem mais poderoso da cidade de Bom Retiro e arredores”.
Para o coronel, Eugénia é a peça substituta para aquela que faltava na engrenagem da sua vida desde a morte da esposa anterior. Para os pais dela, a união é fonte de prestígio. Para a própria, cuja vontade não é considerada relevante, o casamento é um pesadelo do qual pretende escapar. Por isso, concebe um código com pontos de renda aparentemente aleatórios, para comunicar com Inês e outras potenciais aliadas, redigindo um pedido de ajuda que perdurará no tempo, e cujo desenlace Alice – tal como os leitores – se empenhará em desvendar.
Entre capítulos que se sucedem como se quisessem ilustrar que “a vida é como uma renda”, na qual os eventos se entrelaçam, narra-se a empolgante luta pela liberdade de uma sororidade unida por fios invisíveis, bem como a força das suas vitórias, ainda que algumas nasçam de derrotas.
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