I’ve been waiting for a guide to come and take me by the hand
Could these sensations make me feel the pleasures of a normal man?
Lose sensations, spare the insults, leave them for another day
I’ve got the spirit, lose the feeling
Take the shock away
Assim rezam os primeiros versos de “Disorder” (ouvir aqui), a canção que abre “Unknown Pleasures”, o mítico disco dos Joy Division lançado no longínquo ano de 1979. Foi precisamente a Desordem o tema da conversa inaugural do Folio Autores 2024, que em modo diluviano e sob a moderação de Ana Daniela Soares colocou lado a lado a neerlandesa Hannah Bervoets, autora de “Tivemos de Remover Este Post” (ler crítica), e a neo-zelandesa Eleanor Catton, cujo mais recente – e recomendado – romance dá pelo nome de “A Floresta de Birnam” (ler crítica) – sucessor de “Os Luminares”, livro com que a autora venceu o Booker Prize em 2013, tornando-se a mais jovem de sempre (28 anos) a vencer o prémio.
Em tempos desordenados, qual será o papel do escritor? Desarrumar a casa, ou pegar no aspirador para dar sentido ao lar comum? Eleanor Catton recusou a obrigatoriedade de um papel interventivo da escrita, mas admite que os horizontes se tornam mais amplos em momentos turbulentos. “Não deverão existir limites à criação, sobretudo em tempos de crise. A escrita para mim tem mais a ver com escrever sobre coisas que não existem, e não de uma reacção ao mundo. A ficcionalidade da ficção é algo para termos em conta. Não creio que os livros sejam ferramentas para a tomada de decisões”. Hanna Bervoets estica o dedo e decide apanhar a boleia: “A literatura não tem de ser política, mas pode se assim o desejar. Nos meus livros gosto de mostrar a complexidade das emoções humanas e de entender o porquê das escolhas. Mas, sem querer ser muito cínica, a literatura não resolve nada”.
Sobre “Tivemos de Remover Este Post”, Bervoets disse ter querido explorar “os diferentes níveis de moralidade: a do guião a seguir e a individual, muitas vezes em conflito”. Quanto a Catton, aponta as sementes de “A Floresta de Birnam” ao período pós-eleição de Trump, num mundo polarizado entre esquerda e direita. “Voltei a ler Macbeath para entender este drama cósmico. Quando o li na universidade foi descrito com um livro sobre a ambição, mas ao regressar a ele não achei que fosse assim. Queria escrever um livro sobre assuntos políticos contemporâneos, mas sem um ponto de vista especifico. Uma espécie de reinvenção de Macbeth, com os seus temas centrais e algumas peças do seu puzzle”.
Quanto à Internet e ao mundo das redes, Bervoets mantém o seu router ligado. “O meu pai era um hacker. Foi um dos primeiros a aceder a uma pré-Internet, uma rede que ligava os doentes com HIV, uma forma de partilhar conhecimento. A questão que hoje se coloca é se deveremos partilhar o conhecimento na Net ou dar predominâcia a outras formas, deixando de lado as empresas tecnologicas. São necessárias algumas mudancas – no algoritmo, na legislação -, mas continuo uma optimista”.
Perante a timidez do público em colocar questões, foi lançado o desafio a ambas para nomearem os seus livros fundadores. Hanna Bervoets recuou à infância, “o período em que mais li”, para falar de “The Brothers Lionheart”, um dos livros mais acarinhados de Astrid Lindgren, “sobre dois irmãos que morrem e que, no além, vivem uma nova vida numa sociedade fascista. Entusiasmou-me a parte política e o facto de ser uma história sobre o além”. Eleanor Catton preferiu não revelar as suas fundações, mas deu conta de um curioso método criativo. “Os meus livros normalmente surgem quando estou a ler livros de que não estou a gostar. A forma como respondemos às coisas é sempre surpreendente, não segue um caminho suave”. Desafiada a nomear um deles, Catton apontou o livro que a aborreceu tanto que acabou por a fazer sentar-se a escrever “Os Luminares”: “O Castelo dos Destinos Cruzados”, de Italo Calvino.
A pergunta do público surge finalmente, dirigida por Maaza Mengiste – autora de “O Rei-Sombra, livro inaugural da colecção da Tinta da China dirigida por Alberto Manguel -, mostrando-se inquieta sobre o papel do escritor no mundo e até que ponto as palavras – e os livros – continuam a importar. Qual o caminho, afinal, a seguir? Em contraposição a um mundo cada vez mais a preto e branco, Eleanor Catton falou das nuances da natureza, dos seus cruzamentos e possibilidades, de um lugar dado ao acidente e ao imprevisto. Ao contrário das redes sociais, onde o caminho parece ser de sentido único ou de escolher entre dois lados. “A minha resposta é sair da rede. A natureza humana vendida nessas plataformas não representa a verdadeira humanidade. Tenho fé que este não seja o fim do caminho. A ideia de haver um único vencedor não é verdadeira”.
Fotos: Luísa Velez
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