“Perfect Days”, de Wim Wenders, tinha tudo para ser um dramalhão de fazer chorar as pedras da calçada. Conta a história de Hirayama, um japonês de meia-idade que trabalha na limpeza das casas de banho públicas de Tóquio. Os seus rituais diários nunca mudam: acorda antes da alvorada, ao som da vassoura de uma velha vizinha; dobra o futon onde dorme e encosta-o a um canto, com a almofada por cima; escova os dentes; apara o bigode, já de si impecável; rega a creche de plantinhas que guarda sob uma luz púrpura; abre a porta e, com uma pequena pausa, olha para o céu e sorri; já no exterior, insere uma moeda numa máquina de onde cai uma lata de café, que bebe, após o que arranca, na sua modesta carrinha azul, para limpar a primeira casa de banho do dia. À noite, gasta os serões a ler sob um minúsculo candeeiro. No dia seguinte, regressa ao ponto zero da rotina.
Cedo percebemos que Hirayama está longe de sentir esta vida simples como uma maldição. Pelo contrário, parece apreciar sobremaneira todos os pequenos prazeres que ela lhe proporciona: as cassetes de Lou Reed, Patti Smith ou Nina Simone que ouve com deleite na carrinha, a contemplação das árvores no jardim onde faz a pausa para o almoço, as fotos tiradas com a sua máquina fotográfica barata e os livros que o acompanham antes de dormir. Todos os dias, Hirayama recolhe pequenos tesouros que outros ignoram: um pequeno rebento que recolhe para a sua estufa; um sem-abrigo a dançar na rua; ou a forma como a luz do sol é coada pelas folhas das árvores, espectáculo sempre diferente.
A limpeza das casas de banho é feita de forma meticulosa, com atenção ao detalhe e um prazer visível pelo trabalho bem feito. A dada altura o jovem colega diz-lhe: «Não te canses tanto a limpar. Vai sujar-se outra vez!». Hirayama limita-se a olhar para ele, sem resposta.
O filme nasceu de uma visita do realizador alemão Wim Wenders ao Japão, país pelo qual é apaixonado. Foi a convite do Tokyo Toilet, projecto colaborativo que visou construir dezassete casas de banho públicas inovadoras — cada uma concebida por um arquitecto, designer ou artista de renome — no bairro de Shibuya. Todas são pequenas jóias, monumentos de simplicidade, e a iniciativa é um exemplo da forma civilizada e amigável como os japoneses regressaram às suas cidades depois do confinamento. Foi um convite aberto para que Wenders se inspirasse a produzir o que fosse – um documentário, uma instalação, uma curta -, mas o realizador entusiasmou-se e avançou com uma longa de ficção. «A maneira ideal de conservar um lugar é a ficção», afirmaria, mais tarde, no Festival de Cannes.
Ainda que realizado por um alemão, “Perfect Days” é um filme muito japonês, uma ode serena e minimalista às pequenas coisas da vida. O argumento, escrito por Wenders e Takuma Takasaki, nunca parece forçado. A história desenrola-se gradualmente, com tranquilidade. O realizador filma o banal de uma forma particularmente sensível, e a direcção de fotografia de Franz Lustig faz poesia com a luz das ruas de Tóquio — Wenders e Lustig filmaram tudo em 16 dias, com recurso a câmaras portáteis. Também a banda sonora, de gosto irrepreensível, merece lugar de destaque — aliás, num filme com tão pouco diálogo, a música é um dispositivo para ajudar a contar a história.
O elemento mais luminoso, no entanto, é a actuação contida de Koji Yakusho no papel de Hirayama. Yakusho — figura maior do cinema japonês, com mais de quarenta anos de carreira — ganhou, com este filme, o galardão de melhor actor no festival de Cannes, em 2023, um prémio inteiramente merecido. É a sua presença magnética que carrega a complexidade das emoções deste filme: a serenidade, a solidão, a felicidade que há na melancolia e a tristeza que tempera a felicidade.
Hirayama é uma espécie de monge zen. A tese que transparece é a de que uma vida preenchida não precisa de muito, o segredo da felicidade é a forma como se aprecia o momento presente e a natureza mais simples das coisas. «O espírito do filme reside no facto de que tudo parece quase sagrado», explica Wenders em entrevista à revista Frieze, «porque é dessa forma que ele olha para todas as coisas».
O protagonista habita ainda num mundo analógico, ouve música em velhas cassetes dos anos 70 e está convencido de que o Spotify é uma loja de discos que não sabe onde fica; o seu telefone é tudo menos smart e não há qualquer televisão ou computador à vista. O compasso lento da sua existência diária é o avesso do sobre-estimulado mundo moderno.
Paradoxalmente, Hirayama parece viver de uma forma mais plena. Tem tempo de sobra para parar e apreciar o trivial, tudo o que se perde no actual espírito dos tempos, cheio de distracções, notificações e disparos de dopamina. «Hirayama é o mestre da sua vida», diz ainda o realizador alemão, «tudo o que faz, fá-lo porque quer».
Acontecem, entretanto, algumas complicações: há um colega estroina, que se atrasa, crava dinheiro ou abandona o emprego; uma criança que se perde da mãe no jardim; a visita inesperada da sobrinha adolescente, Niko, que atenua por algum tempo a solidão.
Quando a irmã de Hirayama sai de um Lexus cintilante com motorista para recolher a filha foragida, percebemos que há questões de classe em jogo. «É mesmo verdade que trabalhas a limpar casas de banho?» diz a irmã, com um suave aroma de condescendência. Será que Hirayama nem sempre foi aquela alma gentil? Terá trocado uma vida de luxo por uma existência mais simples e, ironicamente, mais preenchida? Wenders não nos dá respostas neste campo, antes deixa a questão à nossa imaginação.
De certa forma, o filme encarna a mentalidade que procura transmitir: somos encorajados a ver “Perfect Days” da mesma maneira que o protagonista encara a vida: colocar de parte o passado e o futuro, olhar para o agora e apreciar o absoluto milagre que é o momento presente.
1 Commentário
Excelente análise e comentário de um filme muito especial e de um realizador também muito bom e que gosta muito de filmar com a luz de portugal.
Abraço
Nuno