“Se quiserem saber quão pobre alguém foi enquanto crescia, perguntem-lhe quantas janelas tinha. Não perguntem o que tinham no frigorífico ou no armário. O número de janelas diz tudo. Mesmo tudo. Se não tinham nenhuma ou se talvez tivessem uma ou duas, não precisam de saber mais nada.”
Sejam bem-vindos a “Seios e Óvulos” (Casa das Letras, 2023), o electrizante romance de estreia da japonesa Mieko Kawakami, qualquer coisa como um tratado literário sobre o corpo que dinamita as ideias patriarcais – ou convencionais – de feminilidade e maternidade. No seu centro estão três mulheres: Natsu, de trinta anos; a sua irmã mais velha, Makiko, de trinta e nove; e a filha desta, Midoriko, com 12 anos.
A viver em Tóquio, Natsu aguarda pela visita da sua irmã, que visita a cidade à procura de uma operação a baixo custo para aumentar os seios, mesmo que o dinheiro não seja muito – se a operação acontece ou não, ficará a dúvida. Com Makiko viaja Midoriko, que não fala com a mãe há seis meses – apenas o faz por escrito. “Tinha um apetite saudável, ia à escola e falava normalmente com os amigos e os professores. Só não falava com a mãe. Parecia não haver mais nada fora do normal. Apenas se recusava a falar em casa. De propósito”.
É precisamente através do diário da ainda não adolescente Midoriko, que em breve terá o período mas não tem pensos higiénicos em casa, que surgem os primeiros questionamentos à maternidade, tema central do livro: “No outro dia, na escola, entre aulas, alguém, não me lembro quem, dizia: «Nasci rapariga e, por isso, sem dúvida que quero ter um bebé meu, um dia.» Mas de onde vem isso? O sangue que sai do nosso corpo transforma-nos em mulheres? Em potenciais mães? E o que torna isso assim tão fantástico? Alguém acredita realmente nisso?”.
Nesta primeira parte do romance, revisitamos o passado trágico em comum das irmãs, ao mesmo tempo que nos é dado um olhar da condição feminina no Japão, seja pela dependência financeira das mulheres em relação aos homens – o que as torna, muitas vezes, criadas e cuidadoras das sogras – como da própria misoginia presente, imagine-se, no budismo, que defende que “para uma mulher se tornar um Buda, primeiro tem de renascer como homem”.
A segunda metade decorre uma decada depois, quando Natsu regressa à sua cidade natal enfrentando a ansiedade sobre a ideia de envelhecer sozinha e sem filhos. Natsu ganha a vida como escritora, algo que ainda lhe parece estranho. Teve em tempos um namorado, uma relação que terminou por Natsu não achar que o sexo era uma parte importante da relação. “Compreendia o desejo de ter alguém a meu lado, de querer dar a mão a alguém. Tinha sentido essas explosões de paixão depois de dizer alguma coisa importate ou quando me apercebia da intensidade dos meus sentimentos. Queria partilhar aquela sensação, mas, quando as coisas começavam a tornar-se físicas, os meus ombros ficavam tensos e o resto do corpo também. A paixão e o sexo eram incompatíveis para mim. Não tinham qualquer relação”.
Através do questionamento de Natsu em tornar-se ou não mãe, Mieko Kawakami traça um panorama sobre os bancos de doação de esperma – oficiais e ilegais – e os tratamentos de infertilidade com esperma de terceiros, método válido apenas para casais que se tinham submetido a tratamentos, ficando de fora ao seu acesso os homossexuais e as mulheres solteiras.
Neste questionamento sobre o que é ser mulher num mundo governado por homens, lançam-se perguntas fundamentais como o que significa conhecer alguém ao certo, arrisca-se a incompatibilidade entre homens e mulheres, questiona-se o papel da literatura, aponta-se o sexo como “a insanidade temporária das nossas vidas” e discute-se se, afinal, a maternidade é um acto de amor ou de egoísmo. Um dos grandes romances de 2023 com edição portuguesa, cuja relevância surge no andamento final: “Se conseguires escrever sobre ti assim, sobre a tua sexualidade, as tuas finanças, as tuas emoções… se conseguires engravidar sozinha e ser mãe (ou mesmo que não consigas), se escreveres sobre tudo o que acontece no processo, fazes ideia do que significaria para tantas mulheres?”.
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