“A ansiedade de um ilhéu é uma fonte de histórias pelas esquinas”. Dono dessa ansiedade de ilhéu, um homem condenado e à espera de ser “polvilhado de balas”, faz uso de técnicas que remontam às 1001 Noites, oscilando entre condenado, biógrafo e contador de estórias. Enquanto conta, encanta e narra a vida e um prodígio: o Língua. Alguém que, tal qual Xerazade, vai atrasando o seu destino – ou, melhor, recriando destinos, enquanto trata de inventar uma utopia.
Nesta “Biografia do Língua” (Dom Quixote, 2015), livro vencedor do Prémio Literário Miguel Torga, Mário Lúcio Sousa dá-nos a conhecer o povo de Falésia, “um povo brando e habituado ao desapego, pela nossa própria origem, porque este povo nasceu pendurado da vida de alguém que estava por um fio, mas sei que temos a debilidade de um bicho destroçado, sei que a porta da saudade nos deixa como cão que perdeu o dono. Agora só nos resta o consolo”.
A palavra é o consolo de qualquer escritor; a ferramenta e a obra feita de cada; a utopia. Por isso, o tempo passa e ele não morre: nem de balas, nem de fome. A sua condenação passa a ser outra. Ele é um autor sem medo da página em branco. O povo fervilha de curiosidade e de respeito por cada novo capítulo, e isso basta-lhe para encher os dias de narração. E, se mais não alcançar, consegue a proeza de converter os seus verdugos numa turma de escuteiros à volta da fogueira, ansiosos pelo próximo capítulo.
Capítulo a capítulo, a mensagem espalha-se e a aldeia trepa a falésia para ouvir contar uma estória que, em pouco tempo, se transforma na história de uma nova comunidade com qualidades mágicas: a de saber ouvir, em silêncio. “O silêncio, para quem escuta, é uma multidão sábia”.
Esta é uma comunidade que se junta apenas pelo prazer de escutar, tanto que viravolteavam em silêncio para não atrapalhar a magia que testemunhavam na falésia, numa azáfama cativa à palavra do condenado, que já não falava do frenesim da fuga mas do dilema e do enigma que era o amor que desabrochava no seu peito. Quem vê o amor desabrochar ama melhor, quem sente e vê a confiança “entra no mundo, muito diferente de vir ao mundo”.
“Os anos têm olhos na nuca” e o biógrafo, homem com alguns anos a somar aos que foi perdurando na falésia, mostra que uma comunidade não se faz sem memória ou o relato das experiências, que escrevem uma história colectiva: a história de um país, de um continente, da humanidade. Afinal, “o homem é de onde se sente bem”.
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