Em 2006, naquela que hoje parece ter sido uma vida paralela, Justin Vernon seguiu as pisadas de Henry David Thoreau, refugiou-se numa cabana de caça e compôs o seu “Walden”. Dessa auto-imposta clausura, motivada por uma mononucleose que lhe atacou o fígado, nasceria “For Emma, Forever Ago”, o recomendado disco de estreia de Bon Iver que chegou embrulhado numa folk com arranjos delicados, coros etéreos e um falsete de primeira linha a fazer de laço.
Quanto a Ali Lacey, não teve de padecer de qualquer doença física para empreender a sua demanda solitária. Foi, antes, tomado de assalto por uma maleita sentimental que, ao longo da história humana, tem ajudado a verter muita lágrima – e, não raras vezes, a resultar em grandes discos ou outras manifestações artísticas: um desgosto amoroso. Depois de um Verão passado junto a um lago rodeado de árvores, no norte do estado de Nova Iorque, nascia “Birthplace” (2018), a estreia discográfica de Novo Amor – nome que, na cabeça de Ali, soava bem menos lamechas que New Love.
Depois disso houve “Cannot Be, Whatsoever” (2020), criado numa casa em Cardiff que serviu tanto de lar como de estúdio, lugar que Ali diz ter sido de certa forma romantizado, talvez motivado pelos fogos de artifício da Bonfire Night ou pelas gaivotas que acabaram por estender o seu grasnar às gravações. Após o sossego do campo e do meio rebuliço de uma cidade quase inventada, Lacey navegou – literalmente – por outras águas, partindo numa expedição à Antártida com a Greenpeace que teve o objectivo de investigar os impactos da crise climática nas populações de pinguins. Dessa aventura resultou “Antarctican Dream Machine”, um álbum instrumental inspirado na viagem e nos sons do Árctico.
Foi com esta bagagem de porão que Novo Amor se apresentou num esgotado LAV – Lisboa ao Vivo (a 4 de Maio), num concerto que, no mínimo, foi uma surpresa (e das boas). Muito bem acompanhado por três músicos – Tom Mason, Si Martin e Dave Huntriss -, entre sopros, percussão, teclados, baixo e guitarras com e sem electricidade, Ali Lacey (e)levou a atmosfera de estúdio a um outro patamar, e até foi possível vê-lo cantar sem a rede protectora do falsete, mostrando que há por ali, para além de um grande músico, um homem capaz de cantar em várias tonalidades.
Visualmente, o cenário foi inspirado na capa do recente “Collapse List”: duas janelas que nos permitiam ir espreitando a quietude natural, enquanto nos céus se iam desenhando constelações, voavam vagalumes ou se desenrolava um tocante fogo-de-artifício.
Quando se pensava que a interacção de Ali Lacey se iria limitar a uns tímidos “boa noite” ou “obrigado”, o galês soltou a língua e arrancou para o que foi praticamente uma Ted Talk. “O ideal para mim seria um concerto com 6 canções e muita conversa”, lançou, antes de partilhar ter recorrido à Inteligência Artificial para fabricar uma tirada sentimental, que resultou em qualquer coisa como sentir-se “um barco que flutua nos vossos corações”. Assinou um vinil, ofereceu uma palheta e uma setlist, deixou uma palavra de gratidão aos fãs que esperam horas para ficar nas filas da frente e partilhou a sua parte preferida enquanto artista: “Gosto de passar horas a criar pequenos sons, aquele trabalho invisível que ninguém vê”.
Falou da relação amor/ódio na escrita de canções, cuja edição física representa uma espécie de epitáfio. Teve tempo para tocar, a pedido de um fã, “Just Another Way”, canção que estava fora do alinhamento. “Agora vou embaraçar-me graças a si, senhor”, brincou, mas o resultado foi brilhante.
Deixou ainda alguns conselhos para os músicos do futuro, falando da importância da auto-gravação – mesmo que soe “lo-fi”, – de aliar o isolamento criativo a alguns conhecimentos de marketing, de aprender o máximo possível sobre o comportamento da indústria e as técnicas de gravação e de não ter medo de pedir ajuda. Alguém grita, de forma emocionada, que a música de Novo Amor lhe salvou a vida, mimo que Ali Lacey agradece e devolve: “Compreendo, porque a música também me ajudou”. Quem nunca?
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Fotos: João Padinha/Everything is New
Promotora: Everything is New
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