Este livro, escrito por uma autora relativamente jovem – Hanna Bervoets nasceu em 1984, em Amesterdão) -, é de uma actualidade impressionante, e apresenta-nos um universo que muitos desconhecem. “Tivemos de Remover Este Post” (Dom Quixote, 2023), traduzido por Maria Leonor Raven, é narrado por Kayleight, uma jovem moderadora de conteúdos de redes sociais. A sua empresa, a Hexa, é o protótipo de um modelo laboral que vingou entre nós: emprega (de forma precária, claro está) milhares de jovens em muitos países, funciona em laboração contínua por um sistema de turnos e é gerido por regras algo estranguladoras, para dizer o mínimo.
Comecemos pelo princípio. Estes mediadores contactam diariamente com conteúdos abjectos, definindo muitas vezes nas suas análises e decisões a permanência desses mesmos conteúdos ou a sua obliteração.
“Um texto do tipo «Todos os muçulmanos são terroristas» não está autorizado pela plataforma, porque os muçulmanos são uma CP, uma «categoria protegida», tal como as mulheres, os homossexuais e, acredite ou não, senhor Stitic, os heterossexuais. Por outro lado, a frase «Todos os terroristas são muçulmanos» já está autorizada, porque os terroristas não são uma CP e, além disso, «muçulmano» não é um termo insultuoso”, explica-nos a narradora, exemplificando um pouco da semântica kafkiana que grassa no seu quotidiano laboral. Uma estranheza que é estendida a vídeos com imagens de nudez ou violência, nas mais variadas vertentes (como um vídeo de alguém “a brincar com dois gatinhos mortos numa cama”, que não é abrangido por qualquer condenação porque “no início do vídeo já os bichos estavam mortos”). Toda a análise dos conteúdos e tomada de decisões é uma extensão dos tempos em que vivemos. A liberdade de expressão alberga contornos antes insuspeitos, tal como a censura pode surgir envergando as vestes da mais benévola liberdade.
O ambiente laboral nestas empresas – e, em Portugal, já existem várias, embora pouco se fale sobre o assunto – é ditado por regras apertadas, que implicam tempos de pausa rigorosamente vigiados, cacifos onde são deixados os objectos pessoais antes de cada um ocupar o seu posto, proibição absoluta de transportar consigo telemóvel, papel, caneta ou seja o que for onde (ou com o que) se possa escrever.
“Claro que, o trabalho que fazíamos era uma merda completa, mas nós conseguíamos fazê-lo porque nós – eu, a Sigrid e os rapazes – éramos uma equipa e nos apoiávamos mutuamente”, desabafa a nossa protagonista. Sigrid é a sua namorada, um dos pilares que ajudam a suportar um quotidiano espartilhado. A incerteza laboral que toda esta actividade transmite, o cruzamento de vários jovens de diferentes proveniências, cujo destino será brevemente partir para outras latitudes, as casas partilhadas para fazer face às despesas, as consequências da banalização emocional que resulta da exposição continuada aos tais conteúdos abjectos, as mazelas emocionais… tudo isso podemos descortinar neste romance, mais profundo do que possa parecer, onde paira no ar um zeitgeist (um ar dos tempos, na certeira expressão alemã) preocupante e subtil.
Hanna Bervoets tem um Mestrado em Jornalismo de Investigação, publicou sete romances (incluindo “Everything There Was”, ambientado num reality show), alguns contos e ensaios e, entre 2009 e 2014, foi colunista do jornal De Volkskrant, escrevendo sobre os perigos do Digital. Não é por um acaso que ela coloca um ponto final na relação entre Kayleight e Sigrid usando, como detonador, uma discussão absolutamente típica das mais polarizadas e radicais opiniões que abundam pelas redes sociais, entre a conspiração e a ignorância, trazendo à tona o pior dos interlocutores, perante a noção igualmente bem contemporânea de que todas as opiniões são válidas (o que não deixa de evocar a tarefa de validação que estes jovens asseguram diariamente).
Em suma, um romance inteligente e muito bem documentado (no final, a autora faz uma exaustiva lista das obras que consultou para escrever o livro com rigor), que pode alertar alguns mais alheados para as consequências tantas vezes subestimadas do uso obsessivo das redes sociais, mas também para novas realidades laborais e as suas consequências. Incluindo uma crescente desinformação camuflada de abundante informação.
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