Neste final de ano, Godzilla, ou Gojira, como é conhecido na sua terra natal, ressurge como uma manifestação demoníaca e indomável em “Godzilla Minus One”, reflectindo o trauma de uma nação no período pós-Segunda Guerra Mundial e estabelecendo um diálogo directo com o filme original, realizado por Ishirō Honda, estreado em 1954.
Godzilla está profundamente enraizado na consciência colectiva do Japão, servindo como uma poderosa metáfora que traça paralelos com as bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 1945. O filme original é uma obra-prima, produzida pelo lendário estúdio Toho, que reflecte os medos e as ansiedades do Japão sobre as capacidades destrutivas da tecnologia nuclear, bem como o trauma persistente dos bombardeamentos e os seus efeitos duradouros no mundo natural, que resultaram no acordar deste kaiju – uma palavra que significa literalmente “monstro estranho”, mas que é regularmente utilizada para descrever qualquer monstro gigante.
A série de filmes de Godzilla é uma jornada através de diferentes eras cinematográficas (Shōwa, Heisei, Millennium e Reiwa), cada uma trazendo o seu próprio estilo e explorando uma miríade de questões. Tome-se como exemplo o magnífico e psicadélico “Godzilla vs. Hedorah”(1971), estreado numa década de contestação social, onde o monstro radioactivo enfrenta não apenas um inimigo tóxico, mas levantando também a bandeira ecológica, alertando literalmente o espectador sobre os impactos negativos da industrialização e da poluição. É ver para crer.
Já na década de 1980, houve um crescente interesse e debate em torno da engenharia genética e das biotecnologias. Todas essas preocupações da época foram habilmente incorporadas na cultura popular, e um exemplo notável é “Godzilla vs. Biollante”(1989). E, claro, há os filmes que são puro espectáculo, como “Ghidorah, the Three-Headed Monster”(1964) ou “Destroy All Monsters”(1968), onde titãs se enfrentam em batalhas épicas.
O universo cinematográfico de Godzilla funciona como uma tapeçaria de diferentes eras, cada uma costurada com temas, estilos e abordagens únicas, que transcendem as expectativas tradicionais do género, oferecendo comentários sociais, representações alegóricas de eventos históricos e explorações da psicologia humana. Godzilla não é só um monstro, é uma reverberação das preocupações contemporâneas, seja a demolir as cidades costeiras japonesas ou erguendo-se simbolicamente sobre o espírito de uma época.
No entanto, é triste notar que, ao longo dos anos, Hollywood nunca conseguiu assimilar adequadamente a mitologia subjacente a esta criatura. A tentativa de recriar ou adaptar o universo de Godzilla sem uma imersão profunda na sua história e sem a imaginação das técnicas de produção originais acabou por diluir a magia que tornou os filmes tão excepcionais.
Principalmente nas duas primeiras eras, Shōwa e Heisei, em que as tecnologias eram mais rudimentares, realizadores como Ishirō Honda, Jun Fukuda e especialistas em efeitos especiais como Eiji Tsuburaya, demonstraram um talento excepcional ao criarem elaboradas miniaturas e novos efeitos especiais. Cada detalhe minucioso das cidades, desde os edifícios até às ruas, era cuidadosamente concebido para criar a ilusão de destruição em larga escala.
Após vivenciarmos a genialidade de “Shin Godzilla” (2016), uma visão altamente pessoal de Hideaki Anno (Neon Genesis Evangelion), que conduziu o kaiju por territórios políticos inesperados, surge, após uma longa série de produções americanas de qualidade muito questionável, “Godzilla Minus One”. Um regresso que recupera a grandiosidade da narrativa original e do cinema espectáculo.
Realizado por Takashi Yamazaki, este filme comemorativo do 70º aniversário da personagem mergulha-nos no cenário devastador do pós-Segunda Guerra Mundial. Na história, deparamo-nos com um ex-piloto kamikaze assombrado pelos fantasmas do passado e confrontado com a ameaça iminente do monstro. Entre a perda dos seus entes queridos durante a guerra, a vontade de criar uma nova família e a vergonha que o consome por ter escapado aos seus compromissos militares, emerge um conflito interno que transcende as batalhas no campo de guerra. Porque uma guerra nunca acaba.
É neste turbilhão emocional, digno dos melhores melodramas, que “Godzilla Minus One” se revela não apenas um mergulho nas profundezas da psique humana mas, também, uma emocionante aventura épica e experiência cinematográfica. A ideia de que este filme foi realizado com um orçamento inferior a 15 milhões de dólares, uma fracção mínima do investimento habitual nos blockbusters de Hollywood, diz muito sobre a talentosa equipa envolvida na produção. Esta revelação destaca não apenas o talento da equipa técnica e do elenco, mas também sublinha a viabilidade de criar filmes comerciais com CGI de maior qualidade, mesmo com orçamentos mais modestos.
“Godzilla Minus One” é um autêntico tesouro para os fãs desta longa série cinematográfica. Todavia, as suas referências e piscadelas de olho, umas mais evidentes do que outras, nunca comprometem a narrativa singular e a visão única de Yamazaki. O ataque ao bairro de Ginza, ao som do tema do primeiro filme composto por Akira Ifukube, é verdadeiramente arrepiante.
Não é apenas um tributo ao legado da franquia, é uma experiência que se revela completa numa sala de cinema e Yamazaki redefine a percepção dos blockbusters, faz-nos acreditar que uma produção deste género, em 2023, pode alcançar um patamar de excelência. Ouçam o poderoso rugido e deixem-se consumir pelo bafo atómico de Gojira numa sala de cinema perto de vocês.
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