O encanto começa na abertura, ainda antes da primeira história de “Levantai Alto o Pau de Fileira, Carpinteiros e Seymour, Uma Introdução” (Quetzal, 2015), quando J. D. Salinger pede ao leitor que divida em quatro, com a sua mulher e filhos, a dedicatória do livro, convidando-o a fazer parte desse núcleo restrito a que atribui valor. Prelúdios de uma viagem pela pertença à família, oscilante entre a cumplicidade e a crítica, unindo personagens de um enredo muito para além destas duas narrativas que o autor junta numa aparente displasia entre a interacção e o pensamento, factos e emoções, numa narrativa na primeira pessoa, impregnada de conflitos interiores e profundas cumplicidades.
Seymour, irmão mais velho, é apresentado como o epicentro de bonanças e turbulências familiares. Desde logo, pela escolha improvável de um conto taoista para acalmar a irmã de dez meses, a espiritualidade e sabedoria, o casamento gorado, a perfeição dos desempenhos e a morte antecipada.
Em Levantai Alto o Pau de Fileira, Carpinteiros, numa narrativa contemporânea com o final de II guerra mundial, Buddy, o segundo filho mais velho da família Glass, representa os irmãos no casamento do primogénito Seymour, transportando-nos para uma série de enredos e reflexões muito para além da improvável cerimónia. Os epílogos poderão ser vários, quase como se se tratasse de uma narrativa bi ou tricéfala. O que justifica aquela união, o que une aquelas pessoas, o que as (des)compromete quando o desfecho se afasta do que anteviam? O que levará o irmão de um noivo desaparecido entrar num carro e manter-se ligado a uma dama de honor irritada, o pávido marido desta, uma tia complacente e um idoso surdo? Porque não se afasta simplesmente e se protege do desconcerto do momento?
“Estávamos em 1942, (…) recém-incorporado, recém-alertado para a eficácia de me manter perto do rebanho – e, sobretudo, sentia-me só.” Pegando em personagens já conhecidas de publicações anteriores, os Glass, uma complicada família que o escritor criou, composta por dois actores e os seus sete filhos, J. D. Salinger transporta-nos para a sua própria experiência, contemporânea com a segunda Guerra Mundial, conflito que o terá deixado traumatizado, tendo feito parte dos primeiros grupos de soldados americanos a entrarem nos campos de concentração libertados.
O discurso inclusivo da narrativa, apelando à atenção e paciência do leitor – “vou deixar passar a coisa, de momento, se o leitor for capaz de suportar isso comigo” -, compromete-nos em ambas as histórias, sendo que em Seymour, Uma Introdução, Salinger oscila entre considerar o “leitor comum“, a quem se dirige e de quem permanentemente se faz acompanhar, como carcerário ou confidente, de ambos ficando dependente. Mercê da crítica, perante a qual se considera “empedernido mas não grosseiro“, da qual se apresenta dependente e por vezes desconfortável, refém da felicidade do escritor com o “seu leitor comum” a quem destina a sua obra, com integridade, seguro do destinatário, independente da “maré“. De forma por vezes insidiosa e inclusiva, sustenta a integridade da relação do escritor com o seu leitor como algo transcendente à obra produzida, com laivos de loucura e magia.
Segue-se um verdadeiro hino de amor e idolatração do narrador ao irmão mais velho, assente em generosos descritivos físicos, pretexto para qualificativos impregnados de emoção e admiração. Um hino à família, aos laços, à lealdade e às incongruências. Algo que o leitor pode encontrar noutros escritos de J. D. Salinger (1919-2010), que publicou apenas um romance mas mais de uma dúzia de pequenas história ou novelas como estas.
Depois do sucesso de À Espera no Centeio (1951), “Levantai Alto o Pau de Fileira, Carpinteiros e Seymour, Uma Introdução” (1963) surge como parte de um conjunto de nove histórias sobre os Glass, família na qual J. S.Salinger se posiciona de forma reflexiva e epicêntrica, ainda que se servindo de Seymour: “Sou uma espécie de paranóico ao contrário! Suspeito que as pessoas conspiram para me fazer feliz.”
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