A paz de uma pequena aldeia costeira da África Oriental é perturbada pela chegada, ao amanhecer, de um homem branco em muito mau estado: incapaz de falar, desgrenhado, com ar exangue, a roupa suja e a pele ferida. A aparição colapsa ao pés de Hassanali, um lojista pequeno e tímido, que tenta socorrê-lo. Assim começa “O Desertor” (Cavalo de Ferro, 2023), de Abdulrazak Gurnah, levando-nos a suspeitar que o forasteiro poderá ser a personagem para a qual o título nos remete. Porém, o enredo não é assim tão linear. Uma vez que se pode abandonar um combate, um amor, ou um país, há aqui múltiplas deserções a considerar.
A narrativa abarca décadas, cruzando amores proibidos com a história daquela região de África, desde o colonialismo europeu à independência. A chegada do desconhecido – que se identifica como Martin Pearce – ocorre em 1899, durante o domínio britânico, quando ainda estão presentes memórias da escravatura, bem como da passagem dos portugueses. Martin envolve-se com a irmã de Hassanali, Rehana – uma mulher amargurada pelo abandono do marido –, e o interdito dessa relação projectará uma sombra através do tempo, afectando a neta de ambos, Jamila, bem como o amor que esta viverá, em meados do século XX, com Amin, irmão do narrador.
O livro está organizado como um tríptico, cuja primeira parte reúne as perspectivas de Hassanali, Frederick – o representante local do governo britânico –, Rehana e Martin acerca dos acontecimentos que vivenciaram. A caracterização do meio em que a acção decorre é um dos pontos mais fortes da obra, com o particular encanto de evocar um mundo já desaparecido. Contudo, esta parte termina de uma forma decepcionante, quando o narrador, que até então parecia omnipresente, ao ponto de se atribuir o conhecimento das mentes de pessoas que nunca conheceu, faz uma pausa para levantar o véu sobre a sua identidade e declarar que não sabe como se desenvolveu o caso entre Rehana e Martin, estando limitado a conjecturas. Situando-se as personagens num pequeno meio islâmico, onde os comportamentos são impiedosamente escrutinados, sobretudo os das mulheres, esta inflexão parece um subterfúgio para evitar as dificuldades que uma reconstituição realista do romance implicaria – o que surpreende num autor distinguido com o Prémio Nobel da Literatura em 2021.
A segunda parte gira em torno de pares de personagens, descrevendo a infância e a juventude dos irmãos Amin e Rashid, seguida pela paixão entre Amin e Jamila. A terceira e última parte centra-se em Rashid, embora inclua um capítulo referente aos diários que este recebe de Amin. Rashid parte para estudar em Inglaterra pouco antes da independência do seu país e da subsequente guerra civil, vendo-se impedido de regressar. Caber-lhe-á sofrer um racismo que não esperava encontrar e reflectir sobre a transformação do mundo em que cresceu, sobre o colonialismo e a complexidade das relações humanas.
O resultado global recorda-nos que “uma história contém muitas outras, e que elas não nos pertencem, mas se confundem com o curso do nosso tempo, que se apoderam de nós e nos enleiam para todo o sempre”.
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