Se fosse um filme, “Os Despojados” (Saída de Emergência, 2017) seria arrumado entre o “Inception” de Christopher Nolan e o “Lost Highway” de David Lynch. O livro estilhaça as fronteiras da ficção científica, levando-nos a acompanhar a jornada solitária de um homem que procura reconciliar dois mundos que vivem a sua própria versão da (nossa) Guerra Fria. Afinal, “sete gerações de paz não tinham criado confiança”.
Esse homem é Shevek, habitante de Anarres, planeta conhecido pelas suas extensas áreas desérticas e habitado por uma comunidade proletária. Shevek diz ter feito uma descoberta interplanetária mas, olhando para a sua sociedade como um lugar de ódio e desconfiança, decide arriscar uma viagem rumo ao inimigo Urras, um planeta que não poupa recursos e governado por um sistema capitalista que exerce em Shevek algum fascínio – acredita que este é um lugar mais livre e tolerante. O idealismo de Shevek irá ser posto à prova quando se torna uma espécie de peão entre dois regimes, que querem fazer dele o rosto amestrado de uma campanha política.
Ursula K. Le Guin inventou aqui o romance científico da luta de classes, pondo em diálogo – numa discussão que por vezes chega a vias de facto – capitalismo e socialismo, administração e governação, idealismo e materialismo, egoísmo e consciência social, mostrando-nos o delicado equilíbrio da vida que, talvez, tenha como qualidade maior a sua exuberância – e na consciência social o seu único recurso. Críptico, algo desolado e quase sempre solitário, “Os Despojados” é livro para várias navegações, convidando cada leitor a descobrir o seu planeta político.
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