E, de repente, a Barbie.
Quem diria que um filme sobre a mais famosa boneca de sempre, a estereotipada loira de plástico criada em 1959 e símbolo do feminismo de trazer por casa, se iria tornar no acontecimento mais falado do verão cinematográfico de 2023, competindo lado a lado com o biopic do pai da bomba atómica pela posição de estreia mais relevante desta estação? “Barbie” está em todo o lado, a Mattel esfrega as mãos de contente e nós ainda nem percebemos muito bem o que se passa. Eu, pelo menos, não entendi ainda o alcance da coisa, confesso.
A primeira conclusão a retirar do sucesso de “Barbie”, o filme, é que se deve quase por inteiro a uma decisão espectacular da Mattel: a de entregar as rédeas do filme a Greta Gerwig. A realizadora e actriz heroína do indie salta de pés juntos para o blockbuster, mas nem por isso deixa a sua marca autoral de fora, provando categoricamente – depois de anos e anos de filmes anónimos da Marvel, que não interessa quem sejam os realizadores já que parecem todos os mesmo – que o nome de quem assina o filme não só pode, como deve influenciar decisivamente o resultado final.
Assim, depois de anos a fio em que o projecto andou a saltar de produtora em produtora e de mãos em mãos, sem que ninguém soubesse como fazer um filme sobre uma boneca de plástico, Greta Gerwig soube não só perceber o que estava em jogo, como ainda lhe incutiu a sua marca pessoal. Por isso, “Barbie” não é mais do que uma variação dos seus anteriores “Mulherzinhas” ou “Lady Bird” (ou mesmo “Frances Ha”, o filme de Noah Baumbach, seu amigo e colega de longa data, que dá uma ajuda aqui também no argumento): filmes sobre mulheres e sobre o seu crescimento e entrada na vida adulta, coming of ages desajeitados e inseguros que, por isso mesmo, se tornam facilmente identificáveis.
E “Barbie” fá-lo com duas armas. A primeira é essa espécie de consciência auto-depreciativa, que aqui encontra dois aliados de peso de alguma forma inesperados: Margot Robbie (a Barbie perfeita e inevitável, com o seu corpo de vespa e cabeleira loira irrepreensível, mas também um sorriso luminoso, tão luminoso que chega quase a ser artificial – mas que nem por isso deixa de contrastar depois com momentos de grande vulnerabilidade) e Ryan Gosling são dois pesos-pesados que não têm problema em se colocar à prova num projecto destes, divertindo-se à grande; a segunda arma é a da meta-referenciação, que é também uma das imagens de marca do cinema desta década (“Deadpool” é, provavelmente, o que tem levado mais longe esta abordagem), que não só goza com as modelos descontinuadas da boneca (incluindo uma Barbie grávida…) como chega mesmo a ter momentos em que a narradora (Helen Mirren, ela mesmo, também a dar credibilidade a uma boneca de plástico) quebra a quarta parede e diz que Margot Robbie não é a actriz certa para isto, depois desta dizer “não sou bonita”.
Greta Gerwig percebe o legado que tem em mãos, e não só o subverte como lhe dá um twist, adaptando-o aos tempos de hoje e às grandes questões da actualidade. Em simultâneo, “Barbie” não só é um honesto manifesto feminista como, também, denuncia o patriarcado e a masculinidade tóxica, que no fundo são causa e efeito em simultâneo do machismo. Tudo isto embrulhado num invólucro perfeito de plástico cor-de-rosa, a que só falta a canção homónima dos Aqua. Há, contudo, momentos musicais com coreografias irrepreensíveis e cantigas óptimas, de Dua Lipa a Billie Eilish, passando pelos PinkPantheress, pelas Haim e, claro, pelas Spice Girls, que aproveitam o passado de Gosling no Clube dos Amigos Disney.
A história é simples, mas nem por isso menos eficaz. Margot Robbie é a Barbie estereotipada, aquele modelo que pensamos imediatamente quando pensamos na Barbie, que vive num mundo perfeito juntamente com todos os outros modelos da colecção: os Ken e um Alan (quem?). Alan é interpretado por Michael Cera, que volta a fazer de Michael Cera, provando pela enésima vez que a sua carreira só tem interesse quando faz de si mesmo, como naquele meme popular: um tipo cuja carreira é uma piada, que foi longe de mais, e que agora não sabe como parar. Quando Margot Robbie começa a ter problemas existenciais, tem que viajar até ao mundo real e, com a ajuda de uma espécie de namorado (Ryan Gosling), descobrir porque é que a menina que brinca consigo está a passar por um mau momento.
É a comédia clássica do peixe fora de água, em que duas personagens habituadas a viver num mundo perfeito de unicórnios e algodão doce se deparam com o mundo real e todos os seus problemas e dicotomias, que estamos fartos de ver. E depois, de regresso ao mundo da Barbie, dá-se a guerra de sexos, já que Ryan Gosling vai ter contacto com o patriarcado e perceber que a sua vida não tem que depender unicamente da aprovação do sexo feminino. Antes pelo contrário. Por isso, no final, a conclusão é só uma: podes ser quem tu quiseres, se bem que o caminho para lá chegares é um pouco mais longo se fores do sexo feminino. Como é que esta pode ser uma mensagem errada, renegada por tanto incel por essa internet fora? Será que viram o filme, ao menos? É que não há como não gostar deste McBacon.
Publicado originalmente em Royale With Cheese
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