Como transformar um debate sobre a questão europeia num empolgante, informativo e inventivo momento? Fácil. Basta convidar um moderador com o poder condutor e a mestria da conversação de Pedro Mexia e, de cada um dos lados, colocar dois dos poucos génios que habitam a cultura portuguesa: Helena Correia e Eduardo Lourenço. Propunha-se, no âmbito do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, uma conversa sobre a construção da Europa através da literatura.
“A Europa é a Catedral de Chartres e não a CEE“, atirou Mexia recriando o Diário de Miguel Torga, apontando os dois pólos díspares sobre os quais a Europa poderá ser olhada: a cultura e a política. Política que, adimita-se, sai claramente a perder por entre um sentimento de desencanto.
Para Eduardo Lourenço a Europa vive dias de desnorte, algo que só poderá ser alterado quando a Rússia fizer parte do projecto europeu. O pensador português fez uma viagem pelo percurso histórico europeu, do esplendor de Atenas a Roma, até à dupla catástrofe de guerras que atirou com a Europa às cordas e que o projecto europeu – a então CEE – decidiu reabilitar.
Lourenço transportou o desencanto actual perante a ideia de Europa para os anos 1960, momento em que a primeira vaga de emigrantes – cerca de 800 mil almas – abandonou Portugal rumo a França, Alemanha e – mais tarde – Luxemburgo, fazendo com que “de repente não fosse assim tão chique falar francês.” Porém, ao contrário do que acontecerá provavelmente hoje, os que partiram falavam de Portugal sempre com admiração e nunca rancor, regressando nas férias para fazer boa figura perante os que tinham ficado por cá decidindo não arriscar a sorte. A rematar esta ideia de uma Europa desencantada, Eduardo Lourenço apontou a história europeia como a de uma guerra civil permanente e diária, que está longe de ter terminado.
Hélia Correia apontou parte da razão deste imenso desencanto para a ausência de um ensino europeu ao nível literário, ou se quisermos ser mais abrangentes, um ensino cultural. A vencedora do Prémio Pessoa regressou aos primórdios para falar das diferenças entre o modelo europeu grego e o dos povos selvagens, assente no poder da fala e da criação da cultura. Contrapondo a ideia moderna de que os povos do norte trabalham e os do sul preguiçam, Hélia Correia levou os espectadores ao rubro com a leitura de um excerto do “Ensaio sobre a origem das línguas”, de Rosseau, escrito no século XVIII mas que mantém uma estranha actualidade sobre a dicotomia razão/emoção.
Mexia aproveita para lançar o tema Grécia trazendo uma frase que está mais na moda que a comida sem glúten – “Nós não somos a Grécia” -, defendendo que “do ponto de vista retórico quem está do lado de Homero ganha”. Hélia Correia recusou essa ideia de vencedores antecipados, dizendo que não há um lado certo e que a história é devir, aleatória, injusta e pouco normal. Ao contrário da ideia de beleza intocável que temos do paraíso helénico, a história da Grécia é feita de guerras e intrigas, tendo Hélia Correia traçado um paralelismo da democracia grega com a nossa apenas pelo uso da mesma palavra, uma vez que para si a única coisa que poderemos transpor de positivo do período helénico para os dias de hoje será a ideia de exaltação, uma vez que “a democracia não existe“, é apenas um jogo de fantasmas – como se viu recentemente com o fim do sonho grego às mãos dos burocratas europeus. Hélia Correia foi ainda mais longe nesta ideia de falsos estados democráticos: “O boletim de voto não existe. É uma projecção holográfica“. Holográfico foi também o final do debate motivado pelas perguntas do público, que terminou com esta frase de Pedro Mexia: “Começámos com Homero e acabámos com Cavaco Silva”. Felizmente, a história irá guardar com apreço apenas o registo do primeiro.
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