Ao longo dos séculos, muitas figuras femininas participaram no desenvolvimento da Química, embora lhes fosse frequentemente limitado o acesso aos espaços onde o conhecimento era ensinado e produzido, em razão do seu sexo. O reconhecimento merecido nem sempre foi alcançado, e inúmeros nomes foram remetidos para as sombras da História.
João Paulo André, doutorado pela Universidade de Basileia e Professor de Química na Universidade do Minho, contribui para reparar tal injustiça através da publicação de “Irmãs de Prometeu: A Química no Feminino” (Gradiva, 2022), uma narrativa cativante da evolução do nosso conhecimento acerca da Química, protagonizada pelas mulheres brilhantes que a ela se dedicaram.
Nesta entrevista, o autor partilha algumas das suas percepções quanto ao meio académico, além de nos falar do nascimento do seu entusiasmo pela Química, das origens deste livro e de um novo projecto literário que reúne ciência e música.
De entre todas as ciências, por que razão escolheu dedicar-se à Química?
Acho que a responsável por isso foi a professora de Ciências Físico-Químicas que tive no 8º ano, no Liceu Infanta D. Maria, em Coimbra; só me recordo de que se chamava Maria Augusta. Adorava as suas aulas. Naquele tempo, as aulas incluíam demonstrações práticas. Aquelas experiências entusiasmavam-me imenso. Agora tenho alunos que acabam a licenciatura e o mestrado em Química e não só nunca viram a combustão do sódio, como não fazem a mínima ideia sobre o carácter ácido-base das soluções aquosas do óxido que resulta dessa combustão. Houve nas últimas décadas um grande abastardamento do ensino secundário, a todos os níveis. Veja-se ao que chegámos: agora nem professores há!
Como tomou consciência de que uma parte da história da Química – nomeadamente, o contributo das mulheres – permanecia nas sombras e devia ser divulgado?
Foi em Filadélfia, na Chemical Heritage Foundation (atualmente Science History Institute), ao deparar-me com os chamados “livros de segredos” do século XVI e XVII – que, na verdade, são compilações de receitas que vão da culinária à pedra filosofal, passando por preparações cosméticas. Pude inclusivamente consultar aquele que é considerado o primeiro livro de química escrito por uma mulher, Marie Meurdrac. Foi publicado em 1666, em Paris, e tem por título “La Chimie Charitable et Facile en Faveur des Dames”. É na verdade um livro ainda com um grande pendor alquímico.
Durante a pesquisa que realizou para a escrita de “Irmãs de Prometeu”, qual foi o facto cuja descoberta mais o surpreendeu?
Não foram tanto os factos em si, foi mais a descoberta de figuras femininas como Lady Ranelagh ou a Duquesa de Newcastle, por sinal ambas inglesas e contemporâneas (século XVII). A primeira, uma mulher muito piedosa, era irmã de Robert Boyle, um dos pioneiros da física e da química moderna (embora também se dedicasse à alquimia). Esteve sempre ao lado do irmão, apoiando-o e motivando-o, sendo ela própria era uma apaixonada pela química de aplicação medicinal. É um daqueles casos em que se pode dizer que por detrás de um grande homem existe uma grande mulher. A segunda, muito extravagante, foi uma socialite e filósofa natural que contribuiu para a disseminação do atomismo, chegando a escrever poemas sobre os átomos.
Até que ponto considera que os estereótipos de género influenciam as decisões académicas e profissionais das jovens de hoje?
Em países do mundo ocidental não me parece que na actualidade influenciem muito (no plano profissional, porém, a questão da maternidade poderá, por vezes, ser encarada como um óbice). Noutros locais do globo a realidade já é totalmente diferente. São muitos os países, de um modo geral muçulmanos, onde os direitos e as liberdades da mulher são sistematicamente violados; as mulheres nem sequer podem frequentar a universidade. Tal é o caso, por exemplo, do Afeganistão, cujo regime talibã interditou recentemente o seu acesso ao ensino superior.
Com base no contexto actual, qual acredita que será o futuro das políticas promotoras da paridade de género?
Receio que possa conduzir à selecção de pessoas e de contribuições que não sejam necessariamente as melhores. Já se verifica isso na política, em resultado da criação de cotas ou de simplesmente se pretender que pareça bem. No caso do Prémio Nobel, a Academia Real das Ciências da Suécia (que no passado tantas vezes ignorou importantes contribuições femininas para a ciência) já anunciou ter descartado a introdução de cotas. Cada laureado será seleccionado pela relevância do seu trabalho e não pelo seu género ou etnia.
Como professor universitário, sente que a academia valoriza o esforço investido na escrita de obras de divulgação científica?
Acho que agora começa a valorizar, mas pouco; de um modo geral, ainda prevalece a ideia de que se trata de um género menor de produção académica. Nalgumas academias, ainda se valoriza mais três ou quatro artigos saídos numa revista científica de terceira categoria do que um bom livro de divulgação de ciência publicado numa editora de elevado prestígio.
Que reacções obteve da parte dos seus estudantes às obras que publicou?
Na verdade tive até hoje muito poucas. Tenho a impressão de que, na actualidade, são poucos os alunos que lêem alguma coisa em papel.
Pode adiantar algo acerca de novos projectos literários?
Sim, acho que posso, até porque já foi publicamente anunciado numa ou noutra ocasião. Estou a trabalhar num projecto que também envolve o Professor Carlos Fiolhais. É um livro sobre ciência e música. Além disso, tenho neste momento em mãos a preparação da edição inglesa do “Irmãs de Prometeu”.
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