Imaginem verem-se convidados para jantar num restaurante da moda, a piscar o olho à estrela Michelin e, de repente, serem transportados de um imaginado cenário de requinte, serviço aprumado e indumentária de gente fina para uma espécie de taberna no subsolo, com paredes esburacadas, metade do chão arrancado e um cheiro a mofo como se há muito ninguém por lá tivesse ido comer sequer uma empada.
Foi um pouco assim a noite de ontem na cozinha do Palácio Pombal, que esteve longe do requinte imaginado para quem está prestes a pôr os pés na mesma divisãoonde o Marquês de Pombal era servido como um rei. Ou um Marquês, se preferirem. Porém, quando no lugar das amostras gourmet começaram a ser servidas generosas e excepcionais doses de comida caseira, como se a cozinha tivesse voltado a ganhar vida e alma trezentos anos depois, todos quiseram saber o nome do chef que havia preparado tamanhas iguarias. Aqui fica: Corrina Repp.
Em boa hora reabriu Corrina a porta para o armário onde tinha escondido os instrumentos, isto depois dos anos de concertos e discos a solo e com os Tu Fawning, tendo depois disso trabalhado num restaurante, num viveiro de plantas ou a fazer house sitting de uma casa na floresta.
E foi exactamente na floresta, com o tema “Woods”, que se deu início a uma peregrinação pelo mundo de Corrina Repp, feito de claridade e sombras, espaços fechados e passeios a céu aberto, dor e felicidade. Um mundo de contrastes e intersecções sublimado pela sua voz incrível, capaz de percorrer todas as escalas numa palete sonora que vai do sussurro ao grito mais agudo e ecoante.
Se “Woods” soou como se os Portishead tivessem composto uma malha para um filme de David Lynch, “Set fire” foi um passeio às terras altas para ver um coração ser consumido pelas chamas; “The beasts live in the same place” convocou seres fantásticos e imaginários para dançarem por baixo das abóbodas que, por esta altura, já tremiam de felicidade; “Pattern the cut/Calm ass mofo” demorou a arrancar muito por culpa da maquinaria, mas cedo a calmaria deu entrada numa caverna escura onde se recriava o fim do mundo à dimensão de um Morrissoniano “The End”. Em “Live for the dead” enconstámo-nos às margens do rio para procurar ouro, embalados por um tema caloroso que, a certa altura, se dividiu entre a ópera e o free jazz. Há também um momento pop desconcertante, como se os Talking Heads se tivessem reunido aos Gaiteiros de Lisboa, para revisitar um tema dosTu Fawning. Há magia quando Corrina e banda se entregam a “Not the way”, um original de Cass McCombs, mostrando que o caminho certo é muitas vezes o menos iluminado. “Long Shadow”, aqui sem a presença de Peter Broderick, é capaz de ter arrancado várias lágrimas, e provavelmente terá sido aqui que Corrina quase se juntou à torrente – disse a certa altura quase ter chorado a cantar. “The pattern of electricity” descobre o lado mais underground, sexy e rocker de Corrina, num quase tema de embalar onde se ajoelhou para um solo. Quase a fechar há ainda um tema que Corrina escreveu há meia dúzia de anos, que fala da procura do amor, da honestidade e do sublime.
Durante o concerto foram vários os momentos de conversa, fosse para falar do dia especial passado em Lisboa, de suportes para copos – individuais ou prateleiras com três séculos -, do facto de os portugueses e portuguesas serem pessoas lindas – além de terem bons rabos – ou de este ter sido o seu concerto preferido da tour. Bajulações ou excitações à parte, seria difícil ter sonhado uma estreia tão fulgurante de Corrina Repp numa cozinha portuguesa, num concerto feito de intimidade, partilha e sobretudo muito talento. Que os próximos concertos da Pinuts sejam tão bons como este.
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