Em 2018, o Pullitzer musical fez história e da boa. Pela primeira vez, desde a sua criação em 1943, o prémio foi atribuído a um artista fora da comunidade clássica ou jazzística. O contemplado foi Kendrick Lamar, à boleia de um disco trabalhado ao milímetro chamado “DAMN.”. O júri falou numa “virtuosa colecção de canções” que, por entre muito vernáculo e ainda mais autenticidade, conseguiu capturar toda a complexidade da moderna vida afro-americana.
Desde então, Kendrick Lamar transformou-se (ainda mais) num ídolo para muitos, um super-herói olhado com uma essência que vai muito para lá da perecível dualidade feita de carne e osso. Em 2022 chegou “Mr. Morale & the Big Steppers”, disco que parece estar colado com os estilhaços e os cacos que se escondem no interior de Lamar. Mr. Morale será, quem sabe, um alter ego de Kendrick, alguém a quem foi entregue a responsabilidade acrescida de, ao estilo de Moisés em pleno deserto, levantar o moral dos que vivem mergulhados numa vida de pecado e outras maleitas dadas à existência. A resposta de Kendrick surge, a certa altura, no primeiro verso de “Savior”: Kendrick made you think about it, but he is not your savior.
Vítima de idolatria, Kendrick Lamar tem neste seu novo trabalho o mais desencantado e frágil dos seus discos, recusando a capa de super-herói e pedindo, mesmo que tal chegue a parecer hercúleo, ser visto como um tipo como os outros. assumindo a sua própria falibilidade. Talvez por isso o disco soe, muitas vezes, desolado, frágil e quebradiço, mas nem por isso menos conseguido. Liricamente é, tal como DAMN., um primor, um caso raro de cruzamento entre a cultura popular e a crítica política aguçada, a que se junta uma estrutura rítmica densa e dispersa, a que não faltam diversos momentos de um silêncio que parece pesar toneladas.
No concerto no Primavera Sound Porto 2023 (7 Junho), num regresso à Invicta depois de uma primeira passagem em 2014, Kendrick Lamar veio sem banda – apenas um discreto lança-beats numa lateral do palco –, acompanhado de um grupo de bailarinos com coreografias que pareciam ser reflexos distantes de uma marcada inquietude. Como cenário, telas gigantes com ilustrações, que iam caindo e mudando a cada um dos actos de um espectáculo com contidos apontamentos de pirotecnia.
A comunicação com o público foi discreta, mas foram sentidas as palavras de agradecimento a um país onde Lamar disse saber contar com fãs apaixonados. Pelo menos desde que “good kid, m.A.A.d city”, o segundo disco de estúdio, aterrou como um disco voador, viajando até um lugar onde o hip hop se transformou numa nova linguagem – que apaixonou mesmo aqueles que lhe torciam o nariz.
Foi um Kendrick em modo best of, acompanhado a plenos pulmões por uma multidão a quem uma chuva diluviana não assustou, e que foi aproveitando cada momento de silêncio entre canções para gritar pelo seu ídolo: o herói de muitos que apenas quer ser um tipo normal.
Os laços familiares foram apertados na recta final, onde contou com a companhia do primo Baby Keem, que momentos antes havia assinado um concerto imaculado, mostrando que com uma produção mais consistente e inventiva poderá editar um disco maior.
Para os que vieram com as expectativas de ver, no Porto, algo parecido ao que Lamar ofereceu na Altice Arena numa das edições do SBSR, talvez o concerto não tenha passado do morninho. Para outros tantos – talvez menos -, foi uma oportunidade rara de ver Kendrick Lamar a lutar contra uma crise de idolatria. He is not our savior? Na boa, pode ser apenas um tipo comum dado ao génio.
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