Curtas da Estante é uma rubrica de divulgação do Deus Me Livro.
Sobre o livro
«O que não hesito chamar amizade, ainda que apenas epistolar, destes dois camaradas de letras iniciou-se, creio, com o envio, por Jorge de Sena, do inquérito sobre André Gide que se destinava e foi publicado em Unicórnio, em Maio de 1951. Quando ou como se conheceram pessoalmente não sei exactamente, mas sei que se dedicaram amizade, respeito e admiração mútua por cerca de 28 anos. Para mim, Eduardo Lourenço começou por ser o Faria, ainda meu contemporâneo na Faculdade de Letras de Coimbra, finalista quando eu, tardiamente caloira, começava a minha via-sacra de aluna voluntária, enquanto ele se desenhava já como diferente dos demais.»
Mécia de Sena, Acerca desta correspondência
Sobre os autores
Ensaísta português (23 de Maio de 1923, em S. Pedro de Rio Seco, Almeida – Lisboa, 1 de Dezembro de 2020), formado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, onde foi professor entre 1947 e 1953, leccionou depois em várias universidades, como a da Baía, no Brasil, e nas Universidades de Hamburgo, Heidelberg, Montpellier, Grenoble e Nice. Fixando residência em Vence, leccionou, até à sua jubilação, na Universidade de Nice.
Tendo marcado durante cinquenta anos, com especial ressonância no pós-25 de Abril, o pensamento português, a voz de Eduardo Lourenço exerce um profundo e consensual fascínio sobre a intelectualidade portuguesa, surpreendendo pela “capacidade de ser portador de um olhar sempre diferente e inquietante sobre os problemas de que se ocupa”, espantando pela “pluralidade de interesses, a imensidão de uma cultura que não se entrincheira em redutos de erudição, o jogo ilimitado das referências” (cf. COELHO, Eduardo Prado – “Eduardo Lourenço: Um Rio Luminoso”, in A Mecânica dos Fluídos, Lisboa, INCM, 1984, p. 280).
Próximo da geração neo-realista, à qual nunca deixaria de dedicar um sério trabalho de reflexão, voltado quer para a especificidade da sua poética (Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, Lisboa, 1968), quer para o estudo dos sobreviventes dessa geração (cf. por exemplo, os vários estudos sobre Vergílio Ferreira, coligidos em O Canto do Signo, Lisboa, Presença, 1994), quer ainda pelas análises de conjunto sobre o fenómeno da afirmação na literatura contemporânea dessa geração que baptizou como “geração da utopia” (cf. ibi., ensaios como “A Ficção dos Anos 40”), pelo seu espírito de isenção e de abertura, tornou-se, após a publicação, em 1949, de Heterodoxia I, uma figura incómoda face às duas forças ideológicas em que se dividia o país: o catolicismo conivente com o regime salazarista e o marxismo, ao defender uma noção de heterodoxia que equivale à aceitação da pluralidade de “ortodoxias”.
No início dos anos cinquenta, o nome de Eduardo Lourenço surge associado ao projecto Árvore, em cujo número inaugural publicou o ensaio “Esfinge ou a Poesia”, onde apresenta uma conceção de poesia como Esfinge diante da qual o poeta procura “danadamente uma autêntica face de homem, uma existência em busca de uma essência”, definindo-a como “a resolução que damos à história, aos encontros, às promessas de cada vez que consentimos descer das palavras às dificuldades dos atos. Ou subimos dos atos à corola mágica das palavras com que os arrancamos à certa desolação do tempo e da morte.” (“Esfinge ou a Poesia”). Esta função gnósica atribuída à palavra poética determinará a defesa, nos vários estudos críticos e literários publicados ao logo da década de 60, alguns deles na revista O Tempo e o Modo, de que a crítica só faz sentido “esposando simultaneamente a vida e a morte que na sucessão das obras se configura e lendo uma na luz da outra, sem pretender jamais que está em seu poder outra coisa que dizer com atraso, mas o mais claramente que lhe é possível, o discurso inexpresso da Obra”. (O Tempo e o Modo, Maio-Junho de 1966, ensaio coligido in O Canto do Signo, Lisboa, Presença, 1994, p. 46). Este respeito pelo caráter trágico da crítica, conjugado com uma invulgar erudição, capaz de colocar em diálogo tradições literárias e culturais diversas, com a capacidade de, sem trair a textualidade, perseguir a errância (ibi., p. 68) do texto, da sua produção até ao imaginário, individual e coletivo, que simultaneamente reflete e constrói, elevou-o, desde a publicação, em 1957, do ensaio O Desespero Humanista de Miguel Torga até ao recente O Canto do Signo. Existência e Literatura, como orador e como escritor, a um dos expoentes máximos do ensaísmo literário e cultural contemporâneo, estatuto unanimemente reconhecido, por exemplo, na atribuição de vários prémios nacionais e internacionais (Prémio PEN Clube, 1983; Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, 1988; Prémio Camões e Prémio D. Dinis, 1996; Prémio Virgílio Ferreira, pela Universidade de Évora, 2000; condecoração francesa da Legião de Honra, 2002; Prémio Extremadura a la Creación, 2006; Prémio Extremadura para a Criação, 2006; Premio Fernando Pessoa, 2011).
Em complementaridade com o trabalho de crítica literária, o ensaísmo de Eduardo Lourenço revela uma particular preocupação na análise das autognoses coletivas que a cultura literária e artística espelham, reflexão que, desde “O Labirinto da Saudade” até “Poesia e Metafísica”, examinando “as imagens que de nós mesmos temos forjado”, culminaria com uma interrogação sobre o destino português, não só no modo como ele é percecionado nas obras e no nome de alguns dos seus vultos mais representativos (Camões, Antero e, sobretudo, Pessoa), mas, de forma mais abrangente, em volumes como “Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade” (1999), sobre o modo como esse destino é miticamente sobredeterminado. Considerando, do exterior (português fora de Portugal), o destino português, Eduardo Lourenço consegue, neste último volume, fazer concorrer todo o seu saber (histórico, filosófico, literário), para formular, no fim de século, sem qualquer intuito doutrinário, uma imagem imparcial do ser português, na sua singularidade e universalidade, espelho, onde, observando-se, pode conhecer-se e aceitar-se “tal como foi e é, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa imperfeição.” (Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 83).
Jorge de Sena nasceu em Lisboa a 2 de Novembro de 1919 e morreu em Santa Bárbara, na Califórnia, a 4 de Junho de 1978. Licenciado em Engenharia Civil pela Faculdade de Engenharia do Porto, parte para o exílio no Brasil em 1959 e aí doutora-se em Letras e torna-se regente das cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura Portuguesa. Muda-se para os Estados Unidos da América em 1965, lecionando na Universidade de Wisconsin e, anos depois, na Universidade da Califórnia. Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta e tradutor, é considerado um dos mais relevantes escritores de língua portuguesa do século XX, autor de títulos como “Metamorfoses” (1963), “Os Grão-Capitães” (1976), “O Físico Prodigioso” (1977) e “Sinais de Fogo” (1979), este último considerado a sua obra-prima.
Editora: Gradiva
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