Desde a sua estreia, em 1989, com “Até Já Não é Adeus”, Cristina Carvalho (n. 1949) publicou mais de vinte títulos, incluindo livros infanto-juvenis – alguns deles integrados no Plano Nacional de Leitura –, volumes de contos e romances. Desta última categoria, destacam-se “O Olhar e a Alma, Romance de Modigliani” – distinguido com o prémio de Melhor Livro de Ficção Narrativa pela Sociedade Portuguesa de Autores/RTP em 2016 –, “Ingmar Bergman: O Caminho contra o Vento” – vencedor do Grande Prémio de Literatura Biográfica Miguel Torga, promovido pela Associação Portuguesa de Escritores e pela Câmara Municipal de Coimbra – e a sua obra mais recente: “W. B. Yeats: Onde Vão Morrer os Poetas” (Relógio D’Água, 2022 – ler crítica), um romance biográfico centrado neste grande vulto da literatura mundial.
Entrevistámos Cristina Carvalho a propósito deste novo título, onde dá voz a William Butler Yeats, Prémio Nobel da Literatura em 1923,colocando a sua sensibilidade em diálogo com a dele, entre visitas aos lugares deslumbrantes que o autor habitou, referências às lendas ancestrais que o marcaram e descrições de algumas facetas da sua vida fascinante.
No final de “W. B. Yeats: Onde Vão Morrer os Poetas”, diz-nos que Yeats é para si “um entusiasmo perpétuo” desde a adolescência. Qual foi o texto que lhe despertou tal emoção e como explica a sua reacção a ele?
Eu teria uns 13, 14 anos quando, por altura do meu aniversário, os meus pais me ofereceram mais um livro de Lendas. Já tinha vários livros desse género: Lendas da Escandinávia, Lendas da América do Sul, Lendas de Portugal, etc. Eu gostava muito, gostava imenso de saber e sentir essas pulsações reais e mitológicas, nem verdades nem mentiras, histórias de conhecimentos antiquíssimos desencadeadas por culturas ancestrais, inimaginavelmente antigas. Depois seguiam-se as possíveis explicações – normalmente era a minha mãe que me dava essas “lições” – sobre a origem dos povos, as suas lutas, o que comiam, como viviam, como progrediram no desenrolar das idades dos tempos. Enfim, nesse ano recebi as Lendas Celtas, culturas abrangentes de certas regiões do planeta – Irlanda, Escócia, parte da Espanha, etc. E, algures nesse livro, apareciam referências a um homem jovem, belo, sensível e inteligente que escrevia poesia e teatro para quem o quisesse ouvir e ler. Tudo isto bastante misterioso, para mim, mas para os meus pais W.B.Yeats não era um nome desconhecido. Ao longo da minha vida ouvi, vezes sem conta, a minha mãe falar nele. E falava com muita emoção, empoladamente, mesmo até pouco tempo antes de ela morrer – o que aconteceu em 2018, tinha então 96 anos e uns meses. Portanto e para ser mais precisa, não me lembro de um texto apenas, lembro-me de vários ao longo da minha vida.
Na pesquisa que realizou para este livro, descobriu algo que a tenha surpreendido e que possa partilhar connosco?
Sim, descobri a vida amorosa dele. Não a conhecia. Impressionou-me bastante. Todos conhecemos a paixão e do que essa paixão é capaz. Todos conhecemos, acho eu, e pobre de quem não conhece. Mas assim? Com tantos laivos, tantos rumores doentios, absurdos, egoísmos elevados ao paroxismo, tanto sofrimento sentimental? Achei tudo inacreditável. Mas compreendi depois de muito ler e de muito tentar perceber e penetrar nas cavernas da sensibilidade humana – tarefa impossível, eu sei, mas uma pessoa tenta. Tenta sempre. Já é difícil penetrar na nossa própria caverna quanto mais nas dos outros… Esse homem altamente apaixonável e apaixonante que encontrei nos meus 14 anos continua hoje, para mim, admirável, misterioso, com a sedução própria dos espíritos iluminados e olha, olha «estou aqui para ti, com eu ou sem eu, estou aqui sempre, olha para mim, olha, olha…».
O que mais aprecia no folclore da ancestral civilização irlandesa, que tanto marcou Yeats?
O que mais aprecio nesse folclore inimitável é a conjugação da vida humana com a Natureza, essa ambiguidade que até os cientistas amam e exploram e visitam e enaltecem. Ambiguidades. Há lá coisa melhor? Estás? Não estás? Vives? Não vives? Há seres da floresta amigos dos animais? Há ou não há? Claro que há. Há Druidas? Há Fadas? Há cães com duas cabeças? Há seres rastejantes com vozes estranhas, inqualificáveis? Claro que sim! E Willie sabia isto melhor do que ninguém. Ireland’s call. Eu também sei, felizmente. Seria outra pessoa se não soubesse. Só o que eu tenho para contar… E só posso falar de alguém quando penetro no interior desse alguém, muito profundamente, seja por via das Lendas, seja por algo de sua criação e que permanece visível. Sem essa visibilidade e essa atenção desmedida que me acontece frequentemente – estou a falar de mim –, com aproximações de enorme turbulência, claro, só assim consigo falar sobre alguém. Claro que isso é um estado de imenso transtorno mental e até físico, mas é assim. Como já falei de Chopin, de Modigliani, de Selma Lagerlöf, de Ingmar Bergman, de August Strindberg e agora de W.B.Yeats. Espero e desejo continuar.
Desde a publicação desta obra, tem recebido mais reacções de quem já conhecia Yeats, ou de quem o descobriu através de si?
Talvez receba mais reacções de quem já o conhece. Enfim…
No livro, confessa sentir pena de não ter conhecido Yeats. Se fosse possível, preferiria encontrá-lo no tempo em que viveu ou transportá-lo para a actualidade?
Essa é uma pergunta muito interessante e de resposta difícil. Ou seja, acho fácil a resposta, mas…ou seja, para mim, está fora de questão transportá-lo para os dias de hoje. Vamos imaginar que isso era possível. Como é que uma pessoa de outro tempo físico, geográfico, histórico e com outra realidade tão diferente, mas tão diferente, como é que isso seria possível? Cidades gigantescas? Televisão? Internet? Aviões? Sim, porque não vale a pena falar dos campos da província porque nem esses têm já semelhanças, rastos de trilhos antigos, nunca pisados, para um fantasma deambular à vontade. Neste exacto momento em que vou respondendo a esta entrevista, nesta linha, nestas palavras, e como sabemos, nada já é igual ao tempo da linha anterior. Se é que há tempo. “O que é o tempo?” pergunta-me, pergunta-nos o físico quântico Carlo Rovelli – “O tempo não existe…”. Sendo assim, transporto-me mais facilmente a mim para aquele meio, do que ele para este ambiente do século XXI no ano de 2023. Na verdade, queria ter conhecido a pessoa Willie, sim, mas lá em Ben Bulben, em Sligo, em Coole Park, na sua Torre, em Rosses Point, nas florestas, nas profundidades, nos mistérios, na claridade inquietante da pequena ilha Innisfree. E aquela floresta Hazelwood é uma fantasia de inimaginável beleza…
Como autora, prefere criar uma personagem fictícia ou ficcionar uma personalidade histórica?
Gosto das duas situações. Já publiquei 22 livros e apenas 7 são ficções sobre personalidades históricas. Tudo o resto são personagens fictícias. Mas agora estou neste ritmo, por quanto tempo isso não sei. Tudo depende da aceitação que vou tendo como escritora de romances biográficos, de como é que estes livros são considerados pelo público leitor. Porque se eu quisesse escrever para a gaveta também o fazia, mas o meu propósito é, de facto, dar a conhecer certas personalidades sob um outro céu estrelado, sem ser uma biografia. Eu adoro o romance biográfico. É isso. Mas também adoro as figuras que invento, as tais fictícias. Enfim, o que eu adoro, na verdade, é escrever coisas.
O que nos pode revelar acerca dos seus projectos literários?
Estou a escrever um novo romance biográfico. Ainda não vou dizer sobre quem é. E tenho mais três situações literárias que me apareceram e as quais não quero perder. Com as minhas desculpas, não estou a fazer-me de interessante e misteriosa, mas como qualquer amante de Druida, sou cautelosa e só falarei ao cair de uma certa tarde, lá mais para os finais de Agosto, Setembro.
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