Kinuyo Tanaka foi uma das melhores e mais populares actrizes japonesas do seu tempo, participando em mais de 250 filmes e dirigida por mestres como Yasujirô Ozu, Keisuke Kinoshita, Mikio Naruse ou Kenji Mizoguchi.
Durante os anos (19)30, a actriz estava já estabelecida como uma das maiores estrelas locais e, nas décadas seguintes, será um dos rostos mais celebrados nas maiores produções japonesas, entre as quais “Ugetsu”, “O Intendente Sansho” e “A Vida de O’Haru”, de Kenji Mizoguchi. A relação próxima de amizade e trabalho, entre a actriz e o realizador veterano, termina quando Mizoguchi se opõe a uma carta de recomendação da Directors Guild do Japão, que sugeria Tanaka ao estúdio Nikkatsu para o cargo de realizadora. Foi um duro golpe mas, motivada pelas suas ambições pessoais e com o apoio incondicional de Yasujirô Ozu, Mikio Naruse e Keisuke Kinoshita, a sua estreia na realização será assegurada financeiramente pelo modesto estúdio Shintoho.
Em 1953, “Carta de Amor” estreia no Japão e, no ano seguinte, é apresentado com distinção no Festival de Cannes. Foi assim o arranque de uma filmografia singular, ironicamente ofuscada pela sua carreira enquanto actriz.
Depois dos ciclos Mestres Japoneses Desconhecidos I e Mestres Japoneses Desconhecidos II, a distribuidora The Stone and The Plot, com programação de Miguel Patrício, volta a oferecer-nos mais uma amostra da vitalidade do cinema japonês clássico: uma retrospectiva integral do cinema feminista e progressista de Kinuyo Tanaka. O Integral Kinuyo Tanaka vai passar por vários pontos do país, como Lisboa, Porto, Coimbra, Penafiel, Faro, Évora, Funchal ou Braga. Em Lisboa, a primeira parte do ciclo estará em cartaz, com sessões diárias, de 5 a 19 de Abril, no Cinema City de Alvalade. A segunda parte irá para as salas em meados de Maio.
O primeiro tomo deste importante ciclo é composto pelas três primeiras obras da cineasta, exibidas em magníficas versões restauradas em 4K: “Carta de Amor”(1953), “A Lua Ascendeu” (1953) e “Para Sempre Mulher” (1955). Quanto à segunda parte do ciclo, será composta pelos filmes “A Princesa Errante” (1960), “Mulheres da Noite” (1961) e “Senhora Ogin” (1962).
Em “Carta de Amor”, Kinuyo Tanaka anuncia subtilmente as suas intenções como cineasta, colocando no ecrã as experiências femininas e retratando o lugar complexo da mulher japonesa no meio da transformação social do pós-guerra. Lançado um ano após o fim da ocupação americana do Japão, explora os conflitos profissionais e pessoais de Reikichi, um veterano repatriado que procura o seu amor perdido, Michiko, enquanto traduz cartas românticas de prostitutas japonesas para soldados americanos.
Com uma premissa simples, dirige um poderoso melodrama que aponta o dedo a uma certa mentalidade japonesa, rápida no julgamento lançado às mulheres e refém dos valores “tradicionais” japoneses. Sob o pano de fundo de uma antiga mas não esquecida história de amor, o guião incisivo de Keisuke Kinoshita denuncia as hipocrisias da sociedade japonesa, em contraste com os horrores da guerra. Apesar desta leitura política, a cineasta favorece a abordagem às dinâmicas de género e aos fantasmas da guerra, numa experiência vibrante e progressista, filmada com toques modernistas mas sem nunca esquecer que, em resumo, “Carta de Amor” é um grande melodrama romântico, daqueles com um final poderoso. A dimensão humana da primeira obra de Kinuyo Tanaka enche o coração e marca o início de uma filmografia essencial.
O Sr. Asai mora em Nara com as suas três filhas: a mais velha, Chizuru, que voltou para a casa da família após a morte do marido; a do meio, Ayako, em idade de casar mas sem pressa de deixar o progenitor; e a mais nova, Setsuko, a mais exuberante das três irmãs que sonha em mudar-se para a capital. Esta última é muito próxima de Shôji, o jovem cunhado de Chizuru que mora num templo próximo da família Asai. Um dia, ele recebe a visita de um velho amigo, Amamiya, que lhe fala sobre Ayako. Setsuko está convencida de que Shôji ainda tem sentimentos pela sua irmã e fará de tudo para forçar o destino…
Esta é a sinopse de “A Lua Ascendeu” (1953) e poderia bem ser a sinopse de um filme de Yasujirô Ozu. O que não é totalmente mentira, porque a segunda longa-metragem realizada por Kinuyo Tanaka se baseia num guião escrito a quatro mãos por Yasujirô Ozu e Ryôsuke Saitô.
Seguindo as aventuras românticas de três irmãs que levam vidas tranquilas na antiga capital do Japão, Nara, as preocupações femininas de Tanaka alinham-se com o universo de Ozu, num dos poucos argumentos que o mestre ofereceu a outro cineasta para filmar. O sentido de humor subtil de Ozu e o timing de comédia perfeito orquestrado por Kinuyo Tanaka, que também integra o elenco, unem-se para dar lugar a um divertido e melancólico filme que deixa saudades assim que termina.
Encontramos em “A Lua Ascendeu” caras bem conhecidas do universo de Ozu, entre os quais o actor Chishû Ryû (“Viagem a Tóquio”) no papel de patriarca, assim como alguns dos temas predilectos do autor: a dicotomia entre a vida rural e urbana ou o conflito entre gerações. Fãs do realizador “mais japonês dos realizadores japoneses”, encontrem em “A Lua Ascendeu” a vossa nova obsessão.
A terceira proposta do ciclo é “Para Sempre Mulher”, possivelmente o filme mais ambicioso e provocador da cineasta, na forma como expõe sem filtros a condição feminina e a dor das mulheres condenadas às circunstâncias dos seus corpos.
Hokkaido, norte do Japão. Fumiko vive um casamento infeliz. O seu único consolo são os seus dois filhos e um clube de poesia que revela ser a sua principal escapatória, permitindo visitas à cidade. Aí encontra Taku Hori, o marido da sua amiga Kinuko que, como ela, escreve poemas. Ela sente-se cada vez mais atraída por ele, porém Fumiko é diagnosticada com cancro da mama. Enquanto os seus poemas são publicados, sujeita-se a passar por uma mastectomia depois de ser diagnosticada com cancro da mama. A jovem mulher descobre, então, a paixão por um jornalista que vem visitá-la ao hospital.
Numa catártica história sobre feminilidade, arte e resiliência contra as próprias tragédias, Kinuyo Tanaka esforça-se por avançar e desenvolver a perspectiva de “filmes para mulheres, feitos por mulheres”, através da colaboração com Sumie Tanaka, uma argumentista com quem partilha apenas o nome e colaboradora frequente de Mikio Naruse.
A partir desta história melodramática constrói uma viagem emocionalmente transformadora, um retrato à frente do seu tempo que explora temas como a mortalidade, a sexualidade e a independência feminina com uma honestidade rara no cinema. Talvez pela sua experiência como ex-actriz, uma das maiores forças de Kinuyo Tanaka reside em obter interpretações empenhadas e arrebatadoras como a da actriz Yumeji Tsukioka no papel da poetisa Fumiko. Filmado sem qualquer tipo de sensacionalismo, “Para Sempre Mulher” é ao mesmo tempo um filme introspectivo e desconcertante, romântico e político. O derradeiro testemunho feminista de Kinuyo Tanaka.
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