De Alberto Manguel a Irene Vallejo, muitos são os livros sobre livros que merecem um lugar de destaque na biblioteca de cada um. Uma geografia mobiliária que deve deixar espaço reservado para um dos mais interessantes, inventivos e geniais livro sobre o universo literário, assinado pelo norte-americano Martin Puchner: “O Mundo da Escrita” (Temas e Debates, 2018) – com o sub-título O Poder das Histórias que Formaram os Povos e as Civilizações.
Do livro de cabeceira de Alexandre Magno a um salto entre Hogwarts e a Índia, Martin Puchner apresenta-nos a história da literatura como se de um romance de aventuras se tratasse, no espírito da desenfreada Odisseia de Homero. Este é um livro que reafirma a importância da literatura e, se quiserem, o porquê de gastarmos as pestanas agarrados a objectos quadrados feitos de papel – ou gadgets. E fá-lo da melhor das formas: contando uma história com a destreza e o paleio de uma Xerazade.
Ao longo de 16 capítulos, o leitor sentir-se-á levado num tapete voador através de toda a linha temporal da literatura, aprendendo mais sobre o indomável vício dos livros: como Alexandre tornou a Ilíada num texto cosmopolita, e de como a vida por vezes nos troca as voltas e imita a literatura; o curioso Austen Henry Layard e a descoberta de Nínive, uma “cidade obcecada pela escrita” – que merece uma referência na Bíblia; a novidade dos textos das Escrituras Sagradas, que “ligavam as pessoas a eles, exigindo serviço e obediência”, independentemente do patrocínio de grandes reis – como antes havia acontecido com Assurbanipal ou Alexandre; Buda e a solução para o “desapontamento do mundo”, um amante do passado e da ordem chamado Confúcio, a filosofia como preparação para a morte ensinada por Sócrates ou Jesus como a manifestação viva das Escrituras – «E do Verbo fez-se homem»; o Romance do Genji, o primeiro grande romance da história mundial, escrito por uma dama de companhia da corte japonesa, “um mundo literário de biombos, leques e poemas sem compatração com nada do que tivesse sido escrito antes”; as Mil e Uma Noites de Xerazade, que “mudam de forma e assumem vários disfarces, florescendo nas páginas e no teatro, na banda desenhada e nos filmes de animação”; da Igreja como um bom fornecedor literário, com as indulgências a abrirem caminho para a Bíblia; um mergulho no Popol Vuh e na cultura Maia, onde se reforça a ideia, após se afirmar que os seres humanos descobriram a escrita por duas vezes, de que “a história da literatura é uma história de queimar de livros”; “o mais desastrado dos heróis”, que para a literatura ficou conhecido como Dom Quixote; um rei dos jornais e panfletos chamado Benjamin Franklin, um verdadeiro empreendedor da escrita e mais além; Goethe e a invenção do conceito de Literatura Mundial (a partir de livros chineses); o historicismo e a luta pela História, com Engels e Marx ao barulho; a literatura do testemunho surgida contra o estado soviético, onde a memorização da palavra poderia ser a única garantia de uma publicação futura – como no caso de Akhmatova, a Safo russa; a Epopeia de Sunjata, de onde surgem ecos de histórias fundadoras – como a viagem de Ulisses -, e que representa um testemunho incrível da literatura oral, uma vez que foi apenas durante o nosso tempo que foi posta por escrito; o aumento dos estados-nação em meados do século XX, onde se assistiu à explosão da literatura pós-colonial; o mergulho em Hogwarts, que Puchner considera uma mistela entre os romances medievais e o romance de colégio interno.
No final desta incrível viagem, a que se poderá regressar vezes sem conta em noites de insónia, descobre-se a história da literatura como feita de “movimentos laterais e mesmo de recuo”, e Martin Puchner arrisca mesmo alguma futurologia não sem antes olhar para trás: “A característica mais espantosa da literatura sempre foi a sua capacidade de projectar o discurso profundamente no espaço e no tempo. A Internet sobrecarregou o primeiro, permitindo-nos enviar a escrita para qualquer sítio da Terra em segundos. E em relação ao tempo? Quando usei os quatro mil anos de literatura como guia para as mudanças que ocorrem à minha volta, comecei a imaginar os arqueólogos do futuro. Seriam capazes de desenterrar obras-primas esquecidas, como o Épico de Gilgames?”. Se andam à procura de conhecer a história da literatura longe de um olhar enciclopédico, “O Mundo da Escrita” é definitivamente a vossa melhor praia.
Sem Comentários