Em ano que se comemora o centenário do nascimento do canadiano – e posteriormente naturalizado norte-americano – Saul Bellow, Prémio Nobel da Literatura em 1976, temos o prazer de ver reeditado o seu primeiro romance.
Lançado pela primeira vez em 1944 em plena Segunda Guerra Mundial, “Na Corda Bamba” (Quetzal, 2015) é agora alvo de uma nova abordagem editorial e integra o rico espólio da série serpente emplumada, uma das meninas dos olhos da Quetzal.
Escrito em forma de diário – assim definido pelo autor nas primeiras linhas da narrativa: “uma espécie de egoísmo, uma fraqueza e uma prova de mau gosto” -, “Na Corda Bamba” tem como epicentro a vida de Joseph, um jovem desempregado que sente na pele a frustração de quem desespera com a chamada para a guerra e deambula quotidianamente por uma Chicago expectante com o presente e o futuro próximo.
Pensada na primeira pessoa, esta deambulação confessional e filosófica, compreendida entre 15 de dezembro de 1942 e 9 de abril de 1943, escalpeliza as reflexões de Joseph e demonstra claramente o talento de Bellow que utiliza cada palavra, frase e ideia como uma parte de um todo concepcional, como um peça específica de um puzzle construído e pensado dentro de uma linha de pensamento específico.
O resultado é um intrincado texto filosófico, enleado em agradáveis surpresas em forma de elogio à própria literatura. Por vezes alicerçado em curtos diálogos (em especial com uma entidade apelidado de “Espírito das Alternativas”), “Na Corda Bamba” serve-se dessa “simples“ matemática narrativa para levar o leitor a meditar, a pensar sobre uma sociedade que, apesar de presa no calendário há mais de sete décadas, continua muito actual, cínica e mordaz.
À medida que o romance evolui, é palpável e crescente a tensão que coloca em causa todo um edifício de inquietação, mesmo que as questões sejam apresentadas como peças cómicas que roçam, propositadamente, o absurdo. E é esse mesmo o exercício que faz com que a empatia entre quem lê o livro e Joseph aumente, alimentada pela luta do personagem em resguardar a sua liberdade (como pessoa e cidadão) numa sociedade que atormenta, restringe, exige, assusta.
Fala-se de pessoas que se sentem devastadas com a opressão de uma sociedade que arrasta, que consume e desgasta, pelas suas regras, normas impostas por ditaduras, como o é o consumismo norte-americano, glorificado por muitos, odiado por outros, ao ponto de, através de um hilariante paradoxo, se colocar em dúvida uma certa dose de “excessiva humanidade” – e de se avançar como escapar deste (in)feliz destino.
No fundo, Saul Bellow descreve a natureza humana de um ponto de vista que desafia, ferozmente, a sua elasticidade comportamental, o seu poder de adaptação a uma comunidade cara a interrogar sentidos de vida, a colocar em causa a individualidade, mas que se mantém fiel a um racional e disfuncional “capitalismo cerebral”.
“Na Corda Bamba” é um livro marcante, altamente recomendado a quem está interessado a colocar em cheque a autonomia do ser humano, do destino do Homem enquanto ser com possibilidade e direito de escolha, induzida ou não, e que se apoia num determinado Iluminismo filosófico de Spinoza, Locke ou Hobbes – e que tem, como outros contextos, a música clássica e algumas (muitas, diga-se) referências culturais europeias.
1 Commentário
Gostei muito do resumo que vc fez,até vou procurar por esse livro. Obrigada.