Na gélida noite do primeiro dia de Dezembro, a sala 2 do Lisboa ao Vivo recebeu a cantora e compositora Julia Jacklin — a jovem australiana veio promover o mais recente álbum, “Pre Pleasure”, no que foi o último concerto da digressão europeia. Ao início da noite há uma pequena fila de jovens e menos jovens, encolhidos pelo frio, à espera da abertura de portas. Poucos minutos depois das nove é hora de entrar e descongelar. Note-se que, à medida que a sala se vai compondo, há muito pouca gente colada ao telemóvel. É bom constatar que um concerto continua a ser um espaço de convívio, onde se bebe um copo e se põe a escrita em dia com os amigos. Longe vão os tempos da paranóia do covid: vêem-se apenas duas ou três máscaras na multidão.
A abrir as hostilidades subiu ao palco Erin Rae, cantora de Nashville que tem feito as primeiras partes dos concertos de Jacklin. O seu mais recente trabalho, “Lighten Up”, produzido por Jonathan Wilson, navega nas águas do country-pop mais vintage, com ecos da cena musical de Laurel Canyon que dominou a Califórnia nos anos sessenta e setenta do século passado — viveiro de nomes como Neil Young, Graham Nash ou Joni Mitchell. É este último nome que nos salta à memória quando ouvimos Rae. Em estúdio há um lado pop nas suas composições, finamente produzidas e recheadas de detalhes. Ao vivo, Erin optou por se apresentar na versão mais intimista, sozinha em palco com a sua guitarra. Passeou a bela voz e a simpatia ao longo de oito músicas, com destaque para «Modern Woman» e «Lighten Up & Try», tema que fechou a actuação como quem dá um abraço quentinho. Embalado pelo som, a assistência limitou-se a ondular suavemente.
Fez-se um pequeno compasso de espera. A sala 2 do Lisboa ao Vivo lembra bastante as antigas instalações, mais próximas do rio: preservou-se o ambiente, a decoração, o mezzanine, e há que aplaudir a acústica, que soa impecável.
Chega o momento mais esperado: Julia Jacklin entra em palco com um singelo vestido de rosas vermelhas — a merecer elogios de alguém do público —, atacando com uma improvável música de Natal: «Baby Jesus is Nobody’s Baby Now», single de 2020, pedida por alguém no instagram. Toca-o sozinha na guitarra, e o destaque vai para a sua voz angelical, quente e profunda, que enche de imediato a sala. De seguida, com «Be Careful With Yourself», deparamo-nos repentinamente com uma banda de indie-rock: a vigorosa entrada de bateria solta a energia pela sala, que começa a vibrar.
Ao longo da noite a cantora revela a sua destreza como escritora de canções: por vezes, há um crescendo de energia vulcânica que se resolve num som calmo e espaçoso; é o caso da melancólica «Good Guy» ou de «Love, Try Not to Let Go». Noutros pontos, a música ferve em lume brando, atmosférica, como no belíssimo «Body», que nos mergulha num tenso filme policial.
É bem visível que a banda que acompanha Julia — composta pela baixista Mimi Gilbert, a baterista Laurie Torres, o guitarrista Will Kidman e a teclista Jennifer Aslett — é muito coesa, bem entrosada e com uma palpável paixão partilhada pela música.
A cantora revela, a certa altura, que se sente muito emotiva: é o último concerto da digressão — como não se cansou de repetir —, e há alguma nostalgia no ar, despoletada pelo eminente regresso a casa.
«Lydia Wears a Cross», apresentada por Jacklin como uma canção pop, caiu numa plateia já rendida, com todos a cantarem a letra no refrão. O mesmo aconteceu, de forma arrepiante, com «Don’t Know How to Keep Loving You», mais uma música de “Crushing”, álbum de 2019, cantada em uníssono. O concerto aproximava-se do fim. “Vou tocar mais três músicas, depois fingimos que saímos, vocês pedem um encore, tocamos mais uma e acabou”, disse Jacklin candidamente. Nesta recta final, a banda carregou nos amperes para «I Was Neon», «Head Alone» e «Pressure to Party» — três descargas de energia que deixaram toda a gente a dançar.
O final deu-se com a subida ao palco de Erin Rae, chamada para ajudar a fechar a noite. Visivelmente emocionada, Jacklin puxou do seu amor confesso pela cantora Céline Dion e cantou uma versão de «My Heart Will Go On», uma das canções mais reconhecíveis da história da pop. Cantar uma versão dessa canção sem que se torne numa piada não é fácil, mas a prestação de Jacklin foi sentida e sincera, sem uma grama de cinismo, e o público respondeu a isso, aderindo em pleno. Foi caricato testemunhar uma multidão de empedernidos indie-rockers a cantar Céline Dion. Ao contrário do Titanic, a cantora seguiu na sua bem-aventurada rota pelas águas profundas do seu talento.
Fotos: Pic-Nic Produções/Mariana Silva
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