É com um agradecimento à artista plástica Lea Guldditte Hestelund que a dinamarquesa Olga Ravn inicia “Os Funcionários” (Elsinore, 2022), obra finalista do International Booker Prize 2021. “Este livro não existiria sem as suas instalações e esculturas”, escreve a autora. As instalações e esculturas em causa inspiraram a descrição dos objectos misteriosos que aqui encontramos, recolhidos do planeta Nova Descoberta e trazidos para bordo da nave Seis-Mil, onde afectam de modo inesperado o comportamento da equipa mista de humanos e humanoides. A partir deste enredo de ficção científica, desenvolve-se uma reflexão inteligente sobre o que significa ser-se humano, num meio dominado pela lógica empresarial que eleva a produtividade ao estatuto de valor supremo.
A estrutura da obra é algo desconcertante, na medida em que não existe uma narrativa convencional. O texto consiste numa compilação de depoimentos dos funcionários da nave, recolhidos pela entidade patronal. Os depoimentos são curtos, indo desde uma única frase a pouco mais de duas páginas, e estão numerados, mas a numeração não é sequencial – faltam até alguns números – e os seus autores nunca são identificados. Podemos suspeitar que os nºs x e y provêm da mesma fonte, mas é impossível termos a certeza. A ausência de personagens facilmente identificáveis que possamos acompanhar, bem como o facto de alguns eventos serem mencionados, mas não aprofundados, reforça a atmosfera geral de despersonalização e frieza, evocando o efeito perturbador das obras de Kafka. As emoções afloram constantemente, numa linguagem belíssima e cheia de poesia, mas quem recolhe os depoimentos, em nome da empresa, vê os entrevistados como meros funcionários, criados para trabalhar – no caso dos humanoides – ou formatados para tal – no caso dos humanos –, sendo essa perspectiva determinante para os relacionamentos que se estabelecem e para a auto-imagem de cada um.
A desumanização dos humanos através do trabalho é acompanhada pelo desenvolvimento da consciência dos humanoides, ao ponto de a distinção entre as duas categorias nem sempre ser fácil, nem mesmo para os próprios. Percebemos desde o início que estes humanoides sonham e sentem, ou pelo menos acreditam que têm sonhos e emoções. Não são máquinas, mas sim criaturas sintéticas, resultantes da fusão da tecnologia com tecidos biológicos. Não estão menos vivos que os humanos quando os objectos estranhos começam a potenciar a sua capacidade de auto-interrogação, desencadeando atritos entre os dois grupos.
A autora evita os lugares-comuns predominantes na ficção científica sobre conflitos entre humanos e androides. Aqui, o inimigo maior é uma força incorpórea que controla mentes com métricas de desempenho e não hesita em declarar que uma iniciativa interrompida pelo extermínio do seu próprio pessoal será um sucesso, se a informação recolhida permitir aumentar os níveis de produção.
Neste futuro distópico, a capacidade de iniciativa dos humanoides, o apego às memórias que definem cada um deles e a vontade de controlarem os seus destinos desafiam estas relações de poder. A humanidade conquistada recorda à inata aquilo que deve lutar por manter.
Sem Comentários