A sua vida, como costuma dizer-se ao bom estilo hollywoodesco, dava um filme – ou, pelo menos, um documentário, tendo em conta as suas 36 primaveras. De baterista do universo metaleiro, Ólafur Arnalds transformou-se, desde a edição de “Eulogy For Evolution”, em 2005, num dos mais entusiasmantes compositores neo-clássicos da actualidade, entre discos a solo, trabalhos colaborativos ou música composta para filmes e séries televisivas. A um mês do seu regresso a Portugal, onde irá apresentar o disco “Some Kind of Peace” – Casa da Música, Porto (14 Dez.), CCB, Lisboa (15 Dez.), Teatro Virgínia, Torres Novas (16 Dez.) e Theatro Circo, Braga (17 Dez.) -, o Deus Me Livro esteve à conversa (via zoom) com o músico islandês.
O escritor Fernando Pessoa deixou uma arca que, com o tempo e muita imaginação, ganhou o estatuto de um mito literário, cheia de poemas, textos e fragmentos que, de tempos a tempos, surgem organizados sob a forma de livros ou colectâneas – há quem se divirta a imaginar que tinha mesmo alguns compartimentos secretos. No seu caso não há provavelmente uma arca, mas recentemente tivemos a edição algo inesperada do EP “The Invisible”, que gravou há uma década e do qual se parecia ter esquecido. Pelo menos até alguém ter ouvido um tema no Soundcloud e decidido tê-lo no filme “Nomadland”, de Chloé Zhao’s. Como foi o processo de redescobrir – e regravar – algo tocado há dez anos? Houve a tentação de mudar algumas coisas ou tentou permanecer o mais possível perto do material original?
Não mudei nada, excepto a mistura. Muitas vezes, quando estou a olhar para material antigo, gosto de ver o meu “eu” antigo, na forma de composição e das técnicas. Não gosto de mexer nisso, até porque tem a ver com a minha história, mas sinto que a remistura e a remisturização podem sempre melhorar com o tempo. Por essa razão remisturei-as um pouco, apenas para soarem mais abertas melhor gravadas. Não deixa de ser engraçado olharmos para coisas do passado. Damos por nós a pensar coisas como “porque é que fiz isto desta maneira?”, mas muitas das vezes ficamos surpreendidos com coisas que na altura não eram importantes e que hoje o são. Estamos sempre a aprender algo novo mas também a esquecer muitas coisas. E, por vezes, podemos reaaprender ao olhar para o material antigo. É divertido.
É um disco onde podemos ouvir o som dos pedais, levando-nos quase a acreditar que estamos presentes na mesma sala.
Sim, os pedais e outros barulhos. Maioritariamente por ter sido tocado num piano barato (risos).
Quantos pianos e teclados tem em casa?
Sim, definitivamente tenho muitos pianos. Em minha casa existem dois, no estúdio outros três. E na minha tour uso outros três, que estão guardados numa casa na Alemanha. Mas sim, são muitos pianos. É bom quando descobrimos um novo, ou outros instrumentos que encontramos a preços baratos e em segunda mão, antigos, e que até podemos oferecer a alguém. São um tesouro para mim. Mas depois de os comprarmos temos de os afinar, de os manter em bom estado. É fácil quando temos um ou dois, mas quando temos muitos começa a ficar caro mantê-los, além de consumir demasiado tempo.
Em 2020 editou “Some Kind of Peace”, provavelmente o seu álbum mais aclamado. Disco que recentemente teve uma nova edição, intitulada “Some Kind of Peace – Piano Reworks”. Quanto teve a ideia de deixar outras pessoas meterem-se com estas canções, e qual foi a sensação de ouvir a reinterpretação de gente como Hania Rani, JDFR, Alfa Mist ou Dustin O`Halloran?
Não me lembro bem, mas acho que a ideia partiu de um livro que lançámos à volta do disco, onde fizemos os arranjos para piano e lançámos o desafio para as pessoas os tocarem em casa. A ideia original deste novo disco era a de convidar pianistas para tocarem esses arranjos, mas quando começámos a porta ficou aberta para poderem criar as suas próprias versões – o que aconteceu em quase todos os casos (risos). Foi giro ouvir tantas e diferentes formas de imaginar as canções, ver ideias serem levadas a lugares dos quais nunca me teria lembrado. E é fantástico como, apesar de cada canção ter sido gravada por um diferente artista, ainda soa como um álbum. O núcleo, o centro das canções, permaneceu intacto.
Nas escolas de música, pelo menos na sua grande maioria – e em Portugal -, diferentes gerações parecem ter aprendido a tocar piano com os mesmos compositores clássicos. Não seria mais interessante e desafiador para os mais jovens poderem aprender piano com compositores como o Ólafur, Max Richter, Nils Frahm ou Hania Rani, só para apontar alguns?
Penso que sim. A minha sobrinha está no piano e, neste momento, está a aprender Ludovico Eunadi e coisas semelhantes. Depende um pouco do professor, mas se queremos manter as crianças interessadas no piano talvez seja importante ensinar-lhes música que seja pelo menos do mesmo século. É importante.
Foi sempre clara a decisão de misturar a música clássica com a electrónica?
Nem por isso. Não foi realmente uma ideia, mas algo que aconteceu naturalmente. Não penso “isto é clássico e posso adicionar alguma electrónica”. Não vejo a música dessa forma. Apenas gosto de alguns instrumentos, como violinos, pianos e sintetizadores, e de expressar o som que posso fazer com aquilo que tenho disponível. Se tiver sintetizadores disponíveis uso-os. Será mais uma questão de conteúdo e de expressão do que de género musical.
O universo musical tende a ser um pouco narcisista e egocêntrico de tempos a tempos. No seu caso, houve sempre a vontade de explorar o mundo clássico através de projectos colaborativos, como o “The Chopin Project”, com a violoncelista Alice Sara Ott, diversos lançamentos com o compositor alemão Nils Frahm ou a colaboração recente com Bonobo, num tema que foi nomeado para um Grammy.
Para mim, trata-se de gostar de fazer música com amigos. É essa a razão principal para fazer música, não uma questão de carreira ou de querer que o meu nome apareça primeiro nos créditos. Trata-se de comunhão, de passar tempo com bons amigos. Se eles também gostarem de música, então isso significa que vamos também passar algum tempo no estúdio. É desta forma que todos os projectos colaborativos, especialmente os bons, nasceram. De forma espontânea.
Tem tido, ao longo da carreira, uma série de projectos, e uma das suas muitas vidas tem sido compor música para filmes e séries de televisão. Algo que, presumo, implica uma diferente abordagem relativamente à música e à criação, com peças que, em alguns casos, têm de ser mais curtas e colada a segmentos de imagens. Existem dois Ólafurs, dependendo se está a trabalhar num álbum próprio ou numa banda sonora para um filme ou série?
Não exactamente. Claro que há algumas diferenças nas abordagens, mas sinto que vem tudo do mesmo lugar. As maiores diferenças são as de que, num álbum, tenho a liberdade de fazer aquilo que quero. Se quiser fazer um disco de folk italiano posso fazê-lo, não interessa (risos). Mas quando tenho de compor uma banda sonora para um filme existem já diversas directrizes, imagens, um guião, actores, um sentimento que já lá está. É quase como trabalhar com um colaborador, tentar emparelhar a tua energia com uma outra. Um pouco semelhante a quando me sento no estúdio com o Bonobo ou o Nils Frahm e fazemos algo em conjunto. É preciso ter algumas coisas em mente: há peças curtas, muitas vezes têm de ser simples e não podem demasiada densidade para não chocarem com o filme. São muitas e pequenas coisas a ter em conta, mas isso não implica necessariamente uma menor liberdade. Pode mesmo implicar um maior desafio criativo, porque existem fronteiras que é necessário empurrar.
Por falar em diferentes vidas, quando iremos ter um novo disco de Kiasmos? E como é que um respeitoso compositor neo-clássico acabou envolvido no perigoso mundo do techno?
(Risos) Pela mesma razão de tudo o resto, que é fazer a música que gosto (risos). Passámos algum tempo a explorar música electrónica e, no princípio, limitávamo-nos a pôr uns temas no Soundcloud. Depois começou a tornar-se popular e fomos mesmo em tour. Acabámos por ser empurrados para isso, não houve propriamente um planeamento. Estamos sempre a escrever música. De momento não temos nada verdadeiramente pronto para editar, mas estamos sempre a trabalhar em demos e em novas ideias. Devagarinho, devagarinho.
Na música como na vida, muitas vezes falamos na importância da geografia, perguntando-nos se as coisas teriam sido diferentes se tivéssemos nascido numa cidade diferente, num outro país. No seu caso, a geografia parece estar no coração das canções – um pouco talvez como no caso dos compatriotas Sigur Rós. Existe algo como uma alma islandesa nas suas canções?
Provavelmente não faria a mesma música se tivesse nascido em Itália. Mas há muitas razões para isso, como a educação cultural, as escolas de música, etc. Esse som islandês a que se refere, claro que poderá ter um pouco a ver com a paisagem da Islândia, mas em grande parte é criado externamente pelos grupos de marketing turísticos (risos). Se vierem à Islândia para ver uns concertos, a música não vai soar nada como a minha – a maior parte das bandas não soa como eu, não sou assim tão popular (risos). Temos hip hop, R&B, muita música electrónica, indie rock, um pouco como acontece em toda a parte. Mas claro que gostamos de juntar alguma música ambiente, adicionar-lhe algumas paisagens e falar do som islandês. Mas não creio que isso seja uma visão verdadeira do que é o som islandês. Por outro lado, claro que o lugar de onde vimos afecta aquilo que fazemos e quem somos.
A sua carreira tem sido uma viagem e tanto. Começou como baterista em bandas de metal, e nunca será demais agradecer a uma banda – Heaven Shall Burn – que jamais entraria numa playlist desenhada por uma associação religiosa para a entrada no caminho neo-clássico. Pelo caminho houve, por exemplo, “re:member”, um disco que se fez valer de um avançado software que incorporava dois pianos semi-generativos, ou um disco – “Found Songs” – gravado durante sete dias consecutivos, com as músicas a serem disponibilizadas na hora. 15 anos depois de “Eulogy For Evolution”, o que o mantém na corrida?
O que me motiva é a curiosidade, e também a crença de que a criatividade é um processo sem um fim visível. É um continuum que faz parte da vida, não é algo que possamos terminar. E, desde que nos mantenhamos curiosos, continuaremos a percorrer a estrada da criatividade e a descobrir sempre coisas novas.
Vamos ter uma mini tour em Portugal no mês de Dezembro, com visitas a Lisboa, Porto, Braga e Torres Novas. Quais são as expectativas para estes concertos e para o encerramento desta já longa tour?
Estou muito ansioso. Os concertos vão ser em Dezembro, altura do ano em que vai estar muito frio por aqui, por isso vai ser bom ver algum sol (risos). Quero muito encerrar a tour deste “Some Kind of Peace” com mais alguns momentos ao vivo. Tem sido uma viagem fantástica.
Fotos: Anna Maggy
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