Wolf Manhattan apresenta-se vestido com uma narrativa particular: terá crescido como um puto estranho e solitário na Nova Iorque dos anos 80 e 90. A morar por cima de uma lojinha de bairro com o tio, a vida resumia-se a servir à mesa num típico diner durante o dia e a dar ouvidos à vasta colecção de discos do tio à noite. Picado pelo bichinho da criação, gravou uma série de cassetes num velho gravador de quatro pistas; cassetes essas que, entretanto, caíram no esquecimento. Chegados a 2022, as decrépitas fitas magnéticas são encontradas — sabe Deus onde — e reunidas em disco.
Se retirarmos a máscara a Wolf Manhattan, como num episódio antigo do Scooby-doo, descobrimos o DJ e produtor portuense João Vieira, sobejamente conhecido como DJ Kitten, com créditos firmados nos projectos X-Wife e White Hause. Vieira afirma que gosta muito do processo de criar um universo e uma estética onde possa assentar a sua música, e pôs esse gosto em prática na construção de Wolf Manhattan.
Estas treze canções são fruto de apontamentos e experiências do músico, ao longo do tempo, que não encaixavam em nenhum dos outros projectos. Embalado por esse grande fertilizante artístico que foi a pandemia, Vieira foi mais um dos muitos artistas que, confrontados com a impossibilidade de dar concertos, aproveitaram a oportunidade para criar. Com o cúmplice e amigo André Tentúgal, co-produtor do disco, Vieira concebeu uma paleta sonora propositadamente lo-fi — resume-se a uma caixa de ritmos, uma guitarra e um sintetizador vintage (com algumas batotas pelo meio). Tudo muito do-it-yourself, muito punk, abordagem oposta às camadas e camadas do alter-ego White Haus, por exemplo.
Há um lado lúdico nesta música, deveras orelhudo e melódico — vê-se que foi um disco feito com prazer. Isso mesmo transparece em “Voices In My Head”: guitarra em destaque com uma progressão de acordes simples e eficaz. Acontece também em “Five Years”, melodia concisa e cantarolável. As referências avançadas pelo autor para este disco apontam à estética lo-fi dos Moldy Peaches, Jonathan Richman e os seus Modern Lovers, e Daniel Johnston. Também há um lado de surf rock dos anos 50 em alguns destes sons, com os coros e as percussões cristalinas.
Com olho de detective descobrem-se mais algumas influências: a passada lenta dos Velvet Underground revela-se em “Those Days Are Gone”; no início de “Tornado” podemos ver a piromania melódica dos Pixies e, em “Never Want to See You Again”, os Strokes saltam à memória; noutros pontos, podemos ver a sensibilidade pop dos The Shins; ou a voz peculiar de Wayne Coyne, dos Flaming Lips, em “Goodbye”. O disco pode levar-nos a um salão de jogos dos anos 80 — “Surveillance Attack” é uma máquina do tempo, nesse sentido — ou à fervilhante Nova Iorque de início do século, terra dos LCD Soundsystem e dos The Rapture, com “Dead Funny”. Falta referir os pozinhos de punk-rock que, de vez em quando, nos saltam ao caminho — “Ninety-nine” é bom exemplo.
“Little Girl” é um caso à parte — elegante canção de recorte clássico que se entranha no cerebelo. O foco é a voz de João Vieira, embalada por um ritmo que cheira a bossanova.
No conjunto, é um disco que corre, veloz, com muita criatividade à flor da pele e impacto imediato nos pavilhões auriculares. Graficamente, a edição em vinil é esmerada: há um jogo de tabuleiro no interior, com perguntas e respostas, e está previsto para breve um livro ilustrado em risografia, editado pela Stolen Books. Podemos concluir que o desafio de trazer à vida este músico obscuro resultou em pleno, e que o universo do Lobo de Manhattan tem ainda muito por conhecer.
Ao vivo, João Vieira promete uma espécie de performance com um lado teatral, alguns inéditos e muitas surpresas. Os concertos de apresentação decorrem no próximo ano: 3 de Fevereiro no Porto, no Auditório CCOP, e a 10 de Fevereiro em Lisboa, na Galeria ZDB.
Capa: ©Toby Evans-Jesra
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