Daniel Faria faleceu em 1999, com 28 anos de idade, deixando para trás alguns dos melhores versos escritos em português. Em 2019, doze anos após a edição primeira pela Quasi Edições – há muito esgotada –, a Assírio & Alvim reeditou “O Livro do Joaquim”, uma belíssima edição em capa dura que, para além da versão impressa habitual, continha o fac-símile da obra, com a letra manuscrita do autor num caderno de linhas. Já em 2021 foi a vez de “Sétimo Dia” (Assírio & Alvim, 2021), livro que contou com edição de Francisco Saraiva Fino, que nos conta ter sido “um projecto a que Daniel Faria havia regressado com frequência e de que ainda se ocupava (…) nas vésperas da sua morte”.
Para o editor, esta obra inacabada deixada em ficheiros dispersos, e para a qual se escolheu editar com o título de “Sétimo Dia”, “resume neste momento a coesão possível de uma obra inacabada, atravessada por divergências e aproximações que os interlocutores humanos nela representados tendem a polarizar em torno de uma perspectiva de tempo a cumprir, segundo a qual o corpo vai consumando o destino da sua existência contingente em contínua afinidade com a memória futura do seu duplo glorioso”. Leitor compulsivo do texto bíblico, Daniel Faria seguiu aqui o rumo incerto para a transcendência, na procura da passagem do eu físico para o eu espiritual.
“Primeiro Homem. Primeiro Dia” propõe, em jeito de contrastes e dualidades, perdoar as ofensas como cura, estar contra para estar ao lado, falando da tarefa da vida como “o deserto de te gastares” e do afastamento como o caminho para a aproximação.
“Segundo Homem. Segundo Dia” apresenta-nos a um homem indestrutível: “Podem cortar-me o coração que eu vivo”. Ao cortar-se o braço direito, aprende-se a trabalhar com a mão esquerda, “desenhando polvos e homens com muitos braços, como a Medusa cheia de cabeças”. Os olhos, mesmo abertos, são como que punhos cerrados e, quando fechados, “são muito diferentes do silêncio”, num dia em que se sente sempre a falta de um outro.
Em “Terceiro Dia. Terceiro Homem” surge a instalação da doença, do tempo em que se passa das possibilidades às certezas, das esperanças às decisões, e onde a redenção dá lugar à angústia e se chega a renegar Moisés, que prometeu mas não chegou à Terra Prometida. Mede-se a febre de hora a hora e liga-se, de três em três, a um amigo diferente, confiando ao atendedor de chamadas uma passagem bíblica. É Moisés quem domina este dia, que guarda ainda um bom ensinamento: “Nunca cumpras todas as promessas. É um modo muito triste de morrer”.
“Quarto Homem. Quarto Dia” versa sobre como se transmite a pulsão do grito de geração em geração, sobre as palavras equívocas proferidas e a “violência que nos foge e nos oprime”, tudo num manto de abandono, vazio e silêncio.
O último fragmento deixado por Daniel Faria foi “Quinto Homem. Quinto Dia”, onde se escreve à Mãe. A mãe que cose e remenda, onde o desejo de recomeço – “Eu quero começar de novo tudo outra vez” – sucumbe a um caminho que, na sombra, recorda a inevitabilidade, “como se a morte me desse uma direcção”.
Mesmo que aqui mergulhemos privados de qualquer introdução bíblica, uma geografia religiosa ou aprumadas notas de rodapé, estes versos constituem um alimento equilibrado para o espírito. Qualquer coisa como superalimentos poéticos que darão, mesmo ao ateu mais confesso, um reconfortante sentimento de espiritualidade.
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