Estranhas ferramentas são as palavras, entidades imateriais que tanto servem para construir como para destruir. Um génio literário como William Shakespeare estava bem ciente do seu poder e expô-lo em várias das suas obras, sendo talvez “Otelo” (Penguin Clássicos, 2022) aquela em que o faz com maior acutilância.
A personagem que dá título ao livro é um general ao serviço da cidade-estado de Veneza. As histórias da sua vida aventurosa, por si narradas na residência de um senador que o recebia, despertam o amor da filha do anfitrião, a bela e jovem Desdémona, que foge de casa para casar com ele. A união é desigual, não só por haver uma acentuada disparidade etária, mas sobretudo por Otelo ser um estrangeiro de pele negra. Veneza aceita-o pelo seu valor militar, mas faz notar constantemente o facto de ele ser um “estranho forasteiro de aqui e toda a parte”, por vezes de uma forma que hoje classificamos como racista.
Otelo também é alvo do ódio secreto de um dos seus homens, um intriguista chamado Iago. Além de suspeitar que Otelo teve um caso com a sua esposa, Iago não perdoa que o general tenha concedido a outro militar, Cássio, uma promoção de que ele se julgava mais merecedor. Por isso, invocando uma pretensa lealdade, verte no ouvido de Otelo palavras venenosas, insinuando a existência de uma relação ilícita entre Desdémona e Cássio.
Iago domina o drama, sendo fascinante a forma como manipula as outras personagens, levando-as a agir em conformidade com os seus interesses. Embora alegue descender de uma família real, Otelo parece sofrer de um certo complexo de inferioridade e, apesar de afirmar que não compensará inseguranças “com mais inseguranças e receios”, deixa-se enredar facilmente na teia de Iago. É possível que a sua mente tenha ficado mais receptiva à dúvida após ouvir as palavras de despedida do pai de Desdémona: “Traiu o pai, e pode bem trair-te”. A partir do momento em que a desconfiança se instala, tudo é interpretado à sua luz, selando a condenação de Desdémona, num contexto em que algo tão simbólico como a perda inocente de um lenço pode ditar a desgraça de uma mulher.
Daniel Jonas, tradutor e prefaciador desta edição, salienta num excelente texto vários aspectos interessantes do drama, incluindo a crítica pertinente à condição feminina que Shakespeare coloca na boca de Emília, esposa de Iago e aia de Desdémona. Além de tecer considerações que são tão válidas hoje como em 1603, ano em que a peça foi escrita, esta personagem aparentemente secundária também é digna de destaque pela maneira como desafia o dever de obediência para denunciar as maquinações do marido, recusando calar-se e declarando “Hei-de falar tão livre como o vento”.
É a Emília que pertence a descrição do ciúme como “um monstro que a si mesmo se cria e de si nasce”. De entre os diversos sentimentos que alimentam a acção – incluindo o amor, o ódio, a ambição e a inveja –, é o ciúme que se agiganta, devorando tudo e tornando inevitável o desfecho trágico desta peça de notável densidade psicológica.
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