A matéria-prima da banda islandesa Sigur Rós é a emoção. Não há qualquer ironia ou desprendimento intelectual na sua música — a sonoridade é grandiosa, telúrica, envolta em cordas e metais e melodrama: uma espiral crescente apontada à transcendência. É uma música de contrastes, entre a leveza da voz extraterrestre do vocalista e frontman Jónsi Birgisson, e a escala monumental dos arranjos. Ao vivo, esta receita é poderosa e possui um efeito visceral sobre o sistema nervoso.
Pudemos comprovar isso mesmo no serão da passada quarta-feira, dia 28 de Setembro. Depois de uma passagem por terras asiáticas, os islandeses trouxeram a digressão mundial a Lisboa, naquele que foi o primeiro concerto da tour de 2022 em solo europeu. Desde 2016 que não visitavam terras lusas (vieram ao Primavera Sound, no Porto) e, a julgar pela massa humana que os recebeu no Campo Pequeno, havia algumas saudades.
Pouco depois das 21 horas, a belíssima “Untitled #1 – Vaka” inaugurou, da melhor forma, o ambiente espiritual do concerto. A entrada de piano puxou de imediato pelas cordas do coração, acompanhada por projecções vermelho-sangue no fundo do palco. Seguiram-se “#Untitled 2 – Fyrsta” e “Untitled 3 – Samskeyti”, exemplos do pós-rock cinemático pelo qual os Sigur Rós ficaram famosos. A sala ia ganhando uma energia quente e solar.
A partir da quarta música, Jonsi fez uso de um arco de violino para tocar na guitarra eléctrica. O som aproximava-se, nas partes mais tranquilas, do lamento aquático de uma baleia; nos trechos mais selvagens, parecia o guincho de um animal pré-histórico. O músico lembrava um druida, uma figura mística — como um professor de ioga com um part time como músico de death metal. Essa dualidade surgia patente no melódico “Svefn-g-Englar”, que progrediu em crescendo, acabando com Jonsi a cantar para dentro da guitarra, como se esta fosse um instrumento de amplificação das emoções.
O modus operandi dos islandeses repetia-se em vários temas: os músicos começavam com texturas macias, quentes, como correntes vagarosas de lava. Depois pegavam nessas elegantes e atmosféricas catedrais de som para as implodir com estrondo, como falésias a desabar.
“Rafmagnið búið” foi interpretado a solo, furiosamente, com um foco de luz por cima do vocalista, como se ele fosse o centro de uma tempestade, um colérico deus antigo a libertar a raiva.
“Ný Batterý”, do álbum de 1999 “Ágætis byrjun”, foi outro dos pontos altos da noite. Depois de um início pacientemente tecido, a entrada de bateria gongórica de Ólafur Ólafsson desabou como o martelo de Thor, abanando as fundações do Campo Pequeno com uma intensidade que muitas bandas de metal não conseguem atingir. Os momentos mais vigorosos contrastavam com as músicas mais calmas, como o delicado “Gold 2”, um dos novos temas que a banda tem vindo a apresentar ao vivo, ou “Smáskifa”, música que encerrou a primeira parte do concerto.
O segundo set começou com o crescendo explosivo de “Glósóli” e prosseguiu com “Untitled #6 – E-bow”, mais um tema do seminal álbum “()”, de 2002. Ao vivo, a música ganha um corpo poderosíssimo, com uma elevação e uma intensidade difíceis de descrever.
Ao longo da noite, a interacção com o público foi rara. Só perto do final, em “Festival”, vimos Jonsi chegar-se à frente do palco, a puxar pela plateia, momento que reforçou a conexão forte que a banda tem com os seus seguidores – havia sorrisos e dança em toda a parte.
O concerto terminou com “Untitled #8 (popplagið)” — mais uma vez, os músicos foram dando calor à cozedura em direcção a um final que deixou a multidão num êxtase quase místico, um ponto sobre-humano de emoção. Depois de cerca de três horas de concerto, a sala estava rendida.
Com quase trinta anos de carreira, os Sigur Rós continuam deliciosamente estranhos – mantêm a capacidade paradoxal de serem gélidos e candentes ao mesmo tempo; vaporosos e etéreos, mas concretos como penhascos. E continuam a ser uma banda vital.
Fotos: Tiago Cortez
Promotora: Everything is New
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