É uma daquelas edições que ficará para a história da BD – mais pela forma do que pelo conteúdo, diga-se -, para ser guardada com muito zelo e estima pelos amantes de banda desenhada e fãs de Hergé. Criada em 1929, “Tintin no País dos Sovietes” (Asa, 2021) foi a primeira aventura de Tintin, aqui ainda longe do ar esguio e refinado que lhe conhecemos – e que surge, agora e pela primeira vez, numa versão a cores.
É o livro onde, depois de saltar para o volante de um potente descapotável, Tintin ganha uma muito estilosa poupa, um acto cometido por Hergé – então com 21 anos e sem qualquer formação em desenho – que ficará como imagem de marca deste intrépido explorador, sempre na companhia de Milu – que, neste arranque, parece ter alguns anos a mais e peso extra.
A missão é entregue a Tintin pelo «Petit Vingtième», jornal que quer manter os leitores a par com o que se passa no estrangeiro: ir de visita à União Soviética, país de onde promete, antes de entrar no comboio, enviar “postais, vodka e caviar”. Em pouco tempo, Tintin ver-se-à acusado de destruir 10 carruagens e de ter feito desaparecer 218 pessoas, mostrando igualmente ter pouco jeito para a condução, seja de carros, motos ou…locomotivas, mas mostra ter mãozinhas para invenções mecânicas ou uma perninha no boxe.
Numa época em que a Guerra Fria não tinha ainda arrefecido – ou sequer recebido o epíteto -, a grande missão de Tintin é a de desmascarar o paraíso vermelho, mostrando toda a pobreza, mendicidade, repressão e atraso tecnológicos que habitavam o país que ficava do outro lado da cortina – e do mundo.
Esta foi uma estreia, diga-se em boa verdade, pouco auspiciosa para Hergé e o seu Tintin. Hergé, então editor e ilustrador do Le Petit Vingtième, o suplemento infantil do jornal conservador belga Le Vingtième Siècle, decide escrever e ilustrar esta banda desenhada, que foi publicada semanalmente entre Janeiro de 1929 e Maio de 1930, ano em que foi coligido em álbum pela Éditions du Petit Vingtième.
O suplemento era conhecido pela sua posição explicitamente pró-fascista e anti-semita, daí que não fosse de estranhar que o director do jornal, de seu nome Norbert Wallez, encomendasse a Hergé uma BD passada na União Soviética, que de foma mais ou menos subliminar mostrava oposição ao governo ateísta e de esquerda do governo soviético, sendo por demais evidentes as ideias anti-marxistas e anti-comunistas como forma de propaganda junto dos jovens leitores.
Mais tarde, num exercício de mea culpa, Hergé viria a lamentar a natureza propagandista da obra, tendo feito tudo para impedir a sua reedição nas décadas seguintes. Mas também a sua qualidade, que diz ter sido resultado da “transgressão da juventude”, tendo solicitado à Casterman que, caso fosse reeditada, contivesse um aviso sobre o seu conteúdo. A reedição ocorreria em 1969, limitada a 500 exemplares para assinalar o seu 40.º aniversário. Seria reeditada novamente em 1973, em parte por a editora querer fazer face às edições falsificadas vendidas por altos preços, devido a ter-se tornado uma obra de culto. A edição com o facsimile original ocorreria em 1981. Esta edição portuguesa não contém, infelizmente, esse aviso sobre o conteúdo, o que faria dela um documento ainda mais histórico.
Por esta altura, o traço de Hergé era muito mais grosso e dado a variações, com vinhetas maiores que as futuras e balões que vão mudando de forma e figura ao longo das páginas, mas esta é sem dúvida uma edição que vale a pena ter por perto. Afinal, o mito Tintin começou, ainda que por linhas bem tortas, a ser aqui desenhado.
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