Se o MOTELX fosse um filme de terror, este texto teria como subtítulo qualquer coisa como “o legado”. No entanto, como estamos numa publicação séria e respeitável, intitulamo-lo apenas “o rescaldo”. Afinal de contas, este é o texto que serve para fazer o apanhado de mais uma edição do MOTELX, a décima sexta, daquela que é a maior celebração do cinema fantástico em Portugal.
De regresso às sessões sem restrições, depois de dois anos mais tímidos devido à pandemia, o MOTELX voltou a trazer o que de melhor se faz na área do terror e seus derivados aos ecrãs do Cinema São Jorge, num ano de grande destaque para a produção nacional. Apesar de não termos podido ver todos os filmes que queríamos, confirmámos outra tendência actual do género: o folk horror está bem de saúde e recomenda-se. Mas, curiosamente, o grande vencedor a inscrever o seu nome no palmarés do festival este ano não tem nada a ver com rituais, tradições e superstições.
Vamos então aproveitar as linhas seguintes para realçar alguns dos filmes que vimos neste MOTELX, e que queremos recomendar-vos por um motivo ou outro. E, porque convém concluir este parágrafo com alguma tirada espirituosa, tomem lá algo que nunca ouviram antes neste contexto: tenham medo, muito medo. Uhhh.
SPEAK NO EVIL, de Christian Tafdrup
O grande vencedor do Méliès D’Argent para melhor longa-metragem do MOTELX deste ano chama-se “Speak No Evil” (na foto), de Christian Tafdrup, e vem da Dinamarca. Como é sabido, na Escandinávia é tudo perfeito e maravilhoso, um lugr onde o estado social é forte, o sistema de educação é alternativo e adequado, as árvores são feitas de algodão-doce e há unicórnios na rua a correr livremente. Um dia que mande no mundo, apenas os escandinavos poderão ocupar posições de poder. E, no entanto, toda a gente continua a ignorar que é precisamente da Dinamarca que continua a chegar algum do cinema mais perturbador da Europa (do mundo?). Não, esqueçam lá a Áustria. E Lars Von Trier é só o exemplo mais visível. Pode ser que “Speak No Evil” abra as portas a esta cinematografia, que mesmo assim ainda vai colocando algumas coisas nas nossas salas de cinema de quando em vez: “O Culpado”, de Gustav Möller; “Na Fronteira”, de Ali Abbasi; “Daisy Diamond”, de Simon Staho; ou, claro, “A Caça”, de Thomas Vinterberg.
Quanto a “Speak No Evil”, é uma espécie de um home invasion invertido. Aqui, são as vítimas que são convidadas a ir passar um fim-de-semana à casa dos atacantes. Neste caso, um casal dinamarquês que, depois de conhecer brevemente um casal neerlandês numas férias na Toscana, é convidado para um fim-de-semana na casa destes nos Países Baixos. O filme demora-se pela bizarria e até por uma espécie de humor negro durante muito tempo, num build up que nunca sabemos muito bem onde nos vai levar, até explodir tudo numa catarse niilista que irá encher as medidas a Michael Haneke, certamente.
OS DEMÓNIOS DO MEU AVÔ, de Nuno Beato
“Os Demónios do Meu Avô” chega-nos com o peso e a responsabilidade de ser “a primeira longa-metragem de animação portuguesa”. Mas rapidamente se desenvencilha dessa pressão, mostrando facilmente que, pelo menos em termos técnicos, não há nada aqui que deva alguma coisa aos desenhos-animados que se fazem lá fora. A animação digital é sem espinhas, e o filme conta a história de uma jovem adulta, mergulhada no mundo dos empreendedores, das start ups, do networking e de mais uma série de neologismos que não significam absolutamente nada. Depois da morte do avô, tem um burnout e decide ir até à aldeia transmontana onde nasceu e arrumar a casa do avô para a vender. De repente, o filme mergulha no folk horror nacional de superstições e crendices, e o filme passa da animação digital para o stop motion com figuras de barro, baseadas nas esculturas de Rosa Ramalho, e com música dos Gaiteiros de Lisboa.
“Os Demónios do Meu Avô” é uma excelente animação para várias idades, sobre uma jovem que procura fazer as pazes com o passado e com a família, que tem um apurado sentido de narrativa e uma apurada noção do Portugal profundo e real (seja lá isso o que for). Não só é a primeira longa-metragem de animação portuguesa, como é também a melhor longa-metragem de animação portuguesa.
CEMITÉRIO VERMELHO, de Francisco Lacerda
Já que estamos numa de produção nacional, aproveitemos a embalagem para falar de “Cemitério Vermelho”, uma curta-metragem de Francisco Lacerda que é quase um exercício de estilo. Apesar de ser um western spaghetti puro e duro, “Cemitério Vermelho” não deixa de captar o carácter do lugar muito próprio dos Açores, com os seus sotaques. O filme é apenas quase um gimmick – dois cáubois enfrentam-se num cemitério por um saco de moedas de ouro (onde é que já vi isto? Ah sim, em praticamente todos os western spaghetti) -, mas que se vê com extremo deleite. Há violência gráfica, zooms rápidos aos olhos dos actores, cores saturadas e a música do imortal José Pinhal a substituir Ennio Morricone.
SILENT NIGHT, de Camille Griffin
E, de repente, um filme de natal. Keira Knightley, o marido Matthew Goode e os filhos (entre eles Roman Griffin Davis, o de “Jogo Rabbit” e filho da própria realizadora) preparam a ceia enquanto esperam a chegada dos convidados. Há música de natal, peru no forno e não há nada que enganar: “Silent Knight” é um rom-com natalício para substituir “O Amor Acontece” nas tardes do 25 de Dezembro nas televisões nacionais. E, de repente, começam a surgir uns grãos de areia na engrenagem.
Já devíamos ter percebido que algo não estava bem em “Silent Night”. Afinal de contas, estávamos a ver o filme no MOTELX! É que há um apocalipse que se aproxima e aquele não é um natal qualquer – é, precisamente, o último natal da vida daquelas pessoas. Por isso, o filme tanto vai servir para fazer um balanço das suas vidas, muito ao estilo de “Os Amigos de Alex”, como para fazer as pazes com o passado. Tudo isso com um humor ácido, aquele certo savoir faire britânico e um Roman Griffin Davis que é um achado.
Lista dos vencedores
Prémio SCML MOTELX – Melhor Curta Portuguesa 2022
Vencedor: “Vórtice”, de Guilherme Branquinho
Menção Especial: “Reverso”, de André Szankowski
Prémio Méliès d’argent – Melhor Curta Europeia 2022
“Censor of Dreams”, de Léo Berne e Raphaël Rodriguez
Prémio Méliès d’argent – Melhor Longa Europeia 2022
“Speak No Evil”, de Christian Tafdrup
Prémio do Público
“Deadstream”, de Joseph e Vanessa Winter
Prémio microCURTAS
“O Fantasma da Minha Infância”, de Carolina Aguiar, Francisco Magalhães e Pedro de Aires
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