É, por esta altura, o rei das narrativas curtas da Guatemala e arredores, dedicado a um projecto literário onde, entre a ficção e a biografia, vai contando ao leitor a recente e atribulada história de um país – e, com isso, a da sua família.
Em “Luto”, livro mais recuado na linha temporal, a interrogação de Eduardo Halfon era esta: por que motivo terá a morte de Salomón, afogado no lago de Amatitlán aos cinco anos, permanecido um segredo de família – ou, pelo menos, um tema do qual toda a gente se recusava a falar? Uma interrogação maior que levará o protagonista do livro, que partilha o mesmo nome com o autor mas não deverá ser com ele confundido, a viajar até à velha casa dos avós, nas margens do lago de Amatitlán, onde em criança costumava passar os fins-de-semana até a família se mudar para a América.
Agora, em “Canción” (D. Quixote, 2022), Eduardo Halfon faz as malas e ruma a uma outra geografia: “Cheguei a Tóquio disfarçado de árabe”. Estamos num congresso de escritores libaneses, e Eduardo Halfon, nome que aqui é sinónimo de tripla – nome do autor de Canción e que o protagonista e o seu avô também partilham -, vai levar o disfarce à séria. O que, para ele, acaba por não ser uma novidade, seja como escritor guatemalteco, francês, judeu ou centro-americano: “Guardo todos esses disfarces sempre à mão, bem passados a ferro e pendurados no armário”. O embuste, afinal, tem barbas: “O meu avô libanês não era libanês”.
Há, a certa altura, uma referência a “Luto”, dando uma continuidade a esta saga pessoal ficcionada, através da recordação do tio Salomón, “falecido em criança não num lugar, como me tinham contado em pequeno, mas sim ali, numa clínica particular de Nova Iorque, e enterrado em qualquer cemitério da cidade”. Salomón que, para além de ler o futuro a partir dos grãos de café turco pousados no fundo das chávenas, mostrava ter outros atributos: “Conseguia assobiar com a boca fechada. Conseguia tirar pequenas moedas da minha orelha ou cigarros do meu nariz. Apresentou-me, em cartas de jogar que me oferecia em segredo, as minhas primeiras mulheres nuas”.
O cerne de “Canción” está, porém, no rapto do avô do narrador, um comerciante judeu libanês, ocorrido em plena guerra civil da Guatemala, numa fria manhã de Janeiro de 1967, quatro anos antes do nascimento do narrador. Um rapto às mãos de Canción, que havia ganho o nome não por ser músico mas, antes, por ter sido um carniceiro.
A partir da história deste rapto familiar, Eduardo Halfon recua aos tempos da guerrilha guatemalteca, criada no início dos anos sessenta, numa montanha, “por um fantasma e um caimão”, não deixando de fazer referência ao derrube, em 1954, do presidente Jacob Arbenz, “o segundo presidente democraticamente eleito na história do país”, num golpe que contou com a orquestração do governo norte-americano. Mais um curto e essencial capítulo de um estimulante projecto literário, feito num registo que inclui autobiografia, veia poética, um humor tremendo e laivos de magia.
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