É, posto em três palavras, um milagre narrativo em pouco mais de 120 páginas. “Na Praia de Chesil” (Gradiva, 2018 – reedição) revela-nos um Ian McEwan em estado de graça, num curto mas bem espremido romance sobre todas as convenções, barreiras e ideias erguidas em torno do amor e das necessidades e desejos de que se alimentam o sexo e o corpo. O parágrafo de entrada é, desde logo, arrebatador, com a habitual dose cínica e clínica McEwaniana, apresentando de forma exemplar Edward e Florence:
“Eram jovens, licenciados, ambos virgens naquela sua noite de núpcias, e viviam numa época em que uma conversa sobre dificuldades sexuais, que nunca é fácil, era simplesmente impossível. Estavam sentados a jantar numa sala minúscula no primeiro andar de uma estalagem georgiana. Na sala ao lado, através de uma porta aberta, via-se uma cama de colunas, bastante estreita, com uma colcha de um branco imaculado e espantosamente lisa, como se tivesse sido esticada por qualquer mão não humana. Edward não referia que, até então, nunca havia ficado num hotel, enquanto Florence, após muitas viagens que fizera com o pai, em criança, já tinha vasta experiência nesse domínio. Superficialmente, estavam bem-dispostos. O seu casamento, na igreja de St. Mary, em Oxford, tinha corrido bem; o serviço religioso fora correcto, a recepção divertida, a despedida dos amigos da escola e da faculdade ruidosa e animada. Os pais dela não tinham tratado os dele com ares de superioridade, como ambos haviam receado, e a mãe dele portara-se razoavelmente, ou esquecera por completo o objectivo da cerimónia. O casal partira num pequeno carro pertencente à mãe de Florence e chegara ao entardecer ao hotel na costa do Dorset com um tempo que não era perfeito para meados de Julho ou para aquelas circunstâncias, mas que era inteiramente adequado: não chovia, mas também não fazia calor suficiente, segundo Florence, para comerem no exterior, no terraço, como haviam esperado. Edward não era da mesma opinião, mas, delicado como era, nunca lhe passaria pela cabeça contradizê-la numa noite como aquela.”
O ano é 1962. Neste hotel na costa de Dorset, Edward e Florence preparam-se para a sua noite de núpcias, numa época “em que ser jovem era um estorvo social, uma marca de irrelevância, uma situação ligeiramente embaraçosa para a qual o casamento era o início de uma cura”. Dois desconhecidos que, perante o sexo e o corpo, têm ideias muito diferentes. Ao conservadorismo de Edward opõe-se o asco de Florence, para quem a ideia de penetração era “como carne trespassada por uma faca”, sonhando chegar aos bebés tal como a Virgem Maria.
A sua relação, nunca íntima, foi avançando com tímidos empurrões, obtidos de forma muito gradual e espaçada no tempo, num combate desigual que estava, ainda assim, longe de significar um desamor. “Ela amava-o, desejava agradar-lhe, mas tinha de ultrapassar uma repulsa considerável”, passando a viver “da relação secreta entre repulsa e exultação”. Agora, sozinhos num quarto, mostram-se incapazes de derrubar as convenções de uma época e da idade adulta, a que tão ansiosamente querem pertencer, preparando-se para um precoce cair de pano.
Ian McEwan parte desta noite de núpcias para recuar aos tempos em que Florence e Edward se conheceram, contando a história familiar de ambos, descortinando o momento da descoberta do eu interior (e oculto) de cada um, para dar depois um amargo salto ao futuro marcado pelo arrependimento. Uma história de desamor na qual McEwan volta a questionar os códigos morais da sociedade, habituada a ver tudo a preto e branco. Uma pequena obra-prima.
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