É um daqueles livros que, lidos quase noventa anos depois da primeira edição, possuem claramente o estatuto de “livro de época”, seja no tema retratado, no estilo literário, na geografia ou no enquadramento político que há muito se foram.
Novela curta e condensada, “O Busto do Imperador” (Assírio & Alvim, 2022) foi escrita por Joseph Roth no exílio francês, e publicada em 1935 no jornal parisiense de língua alemã Pariser Tageblatt. A acção decorre na pequena aldeia de Lopatyny, situada na antiga Galícia Oriental e actualmente território polaco. É nesse lugar, onde o próprio Roth nasceu, que vive o velho conde Franz Xaver Morstin, agora uma quase relíquia do Império Austro-Húngaro, que vai vivendo dos restos do estatuto adquirido enquanto se confronta com as trágicas mudanças ocorridas na Europa, após a Primeira Guerra Mundial. Alguém que, falando com os seus botões, diz ser “um dos mais nobres e mais puras espécies do austríaco, isto é: um homem supra-nacional e, portanto, um nobre de pura cepa”.
Para os habitantes de Lopatyny, o conde era quase um deus, sobretudo no que dizia respeito aos corredores administrativos, capaz de “proporcionar benefícios fiscais, isentar do serviço militar filhos e enfermiços de uma série de judeus, despachar pedidos de clemência, suavizar as penas de pessoas condenadas injustamente ou a penas demasiado pesadas, obter descontos para pobres nas suas viagens de comboio, aplicar uma pena justa a gendarmes, polícias e funcionários públicos que tenham abusado da sua autoridade, fazer de professores candidatos ao ensino que aguardavam uma vaga professores provisórios, de furriéis na reserva, donos de tabacarias, carteiros de cartas com valor declarado, telegrafistas, estudantes filhos de camponeses pobres e judeus, «bolseiros»”. Em suma, uma “instância não prevista pelo Estado”, que não tinha mãos a medir e media meças com as repartições públicas oficiais.
Através do conde Franz Xaver Morstin, Joseph Roth conduz-nos numa viagem no tempo para acompanhar a queda da Monarquia Austro-Húngara, levantando, a nove décadas de distância, a muito actual questão das nacionalidades, da individualidade e do sentimento de pertença. Quando regressa ao lugar de sempre, que ainda assim parece um outro, o conde interroga-se sobre o significado de terra natal, de identidade, olhando com amargura para o sentimento absoluto de pertença: “Como é sabido, tinha-se descoberto no século dezanove que todo e qualquer indivíduo tinha de pertencer a uma determinada nação ou raça, caso quisesse ser reconhecido verdadeiramente como um indivíduo de plenos direitos de cidadão. «Da humanidade, passando pela nacionalidade, até à bestialidade», dissera o escritor austríaco Grillparzer. Justamente naquela altura, tinha-se começado com a «nacionalidade», o nível preliminar da bestialidade que hoje vivemos”.
A primeira metade do livro oferece uma introdução à vida e à obra de Joseph Roth, e uma carta deste dirigida a Gustav Kiepenheur (1880-1949), um editor alemão que, em 1909, fundou a editora Gustav Kiepenheur Verlag, que publicava clássicos alemães e estrangeiros – e, mais tarde, contemporâneos alemães como Brecht, Anna Seghers e Stefan Zweig.
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