Imaginem o calafrio de “Shining”, atingindo a Palestina como uma inclemente corrente fria, e ficarão com uma ideia aproximada do que irão encontrar em “Um Detalhe Menor” (Dom Quixote, 2022), livro de Adania Shibli – finalista do National Book Award e do International Booker Prize – no qual o terror se vai instalando, de fininho, até fazer com que o leitor olhe desconfiado por cima do ombro. Adania Shibli, nascida em 1974 na Palestina, cruza e sobrepõe duas linhas temporais para tecer uma trama sobre a violência e a memória, no qual se mergulha na experiência palestiniana do apagamento.
A primeira linha temporal recua até ao Verão de 1949, e tem lugar um ano depois da Nakba, nome pelo qual ficou conhecida a catástrofe que expulsou mais de 700 mil palestinianos das suas terras – que os israelitas celebram como a Guerra da Independência. É nesta terra de escombros, onde dominam “as monótonas dunas de areia, que os circundavam em todas as direcções”, que se irá instalar uma unidade de soldados israelitas, com a missão de patrulhar a fronteira do recém-criado Estado de Israel com o Egipto, e que numa das suas saídas irá atacar um grupo de beduínos no deserto do Negueve. Uma história contada por um um narrador com o hábito de trespassar fronteiras, “menos por uma reflexão consciente e mais por mera estupidez“.
Décadas mais tarde, uma jovem mulher palestiniana descobre, em Ramallah, uma breve menção a esse massacre, que se irá tornar numa obsessão pessoal. A juntar à natureza macabra do acontecimento, existe o “detalhe menor” de ter acontecido precisamente vinte e cinco anos de ela ter nascido, algo que a faz balançar entre a desconfiança, a urgência do esquecer e a urgência da investigação: “…desde que tomei conhecimento desta história, empenho-me todos os dias em em convencer da necessidade de esquecê-la completamente e de não realizar quaisquer diligências imprudentes sobre este assunto. Esta data não pode ser outra coisa que não uma pura coincidência“.
“Um Detalhe Menor” é, sem nunca o pretender esconder, um livro político, um grito de guerra contra a ocupação que enfrenta o leitor olhos nos olhos: “A propósito, espero não ter perturbado ninguém quando mencionei o episódio com o soldado ou o posto de controlo, ou se disser abertamente que vivemos sob ocupação. (…) O que acontece diariamente num lugar onde prevalece o tumulto de ocupação e a matança permanente”. Um livro que entra em território minado, ultrapassando a barreira do medo cuja origem “é o medo da barreira do posto de controlo”, para mostrar que, em alguns casos, o passado continua a ser o tempo presente.
Sem Comentários