É um dos mais citados, falados e celebrados manuscritos da história da literatura que, envolto num misterioso anonimato, foi trazido do longínquo século XIV, oferecendo-nos histórias cujas origens se perderam e que, vai-se a ver, poderiam até fazer parte de um todo ainda maior, mostrando-nos uma Pérsia perdida e contos que encerram, em si, a magia da oralidade.
A primeira tradução de As Mil e Uma Noites chegou no século XVIII, quando Antoine Galland, um orientalista francês, se atirou de cabeça. Uma tradução que, por essa altura, fez furor nas cortes eruditas da Europa, apesar do revisionismo literário posterior ter dado conta de uma série de erros, adaptações ao gosto europeu e até mesmo alguns acrescentos, que talvez tenham nascido do entusiasmo – e da caneta – do próprio tradutor.
Foi porém a partir da tradução de Galland que, no século XX, a indústria de Hollywood ajudou a construir todo um imaginário à volta de As Mil e Uma Noites, ainda que muitos leitores não se tenham ainda aventurado pelas páginas deste clássico oriental. Algo que, pelo menos em Portugal, foi reparado recentemente pela E-Primatur, naquela que é a primeira tradução para português a partir dos manuscritos originais em língua árabe, e que resultou na edição da obra em três volumes.
O 1º Volume oferece, para além de um preâmbulo de mais de sessenta páginas assinado pelo tradutor, o relato das primeiras 101 noites passadas pela intrépida Xerazade no quarto de Xarirar, rei da Pérsia; o 2º volume apresenta as restantes noites, bem como uma série de apêndices onde constam algumas versões alternativas – bem como alguns excertos que não são legíveis, ou cujas páginas estão em falta no documento original, mas que são completados por manuscritos posteriores; quando ao 3º volume, uma espécie de livro extra-publicação, surgiu da constatação da necessidade de colmatar lacunas na tradução dos manuscritos mais antigos: a história final que está incompleta; as histórias que são mencionadas mas não são incluídas; ou simplesmente outras histórias provenientes de fontes que permitem clarificar pontos que nos manuscritos mais antigos são imprecisos ou confusos.
No universo de As Mil e Uma Noites, tudo começa mais ou menos quando Xariar, rei da Pérsia da dinastia dos Sassânidas, descobre que mulher anda a dar tudo numa vida paralela, dormindo com um escravo cada vez que ele faz as malas e parte em viagem. Decepcionado, furioso e não tendo de prestar grandes contas perante a lei, Xariar mata a mulher e o escravo, convencendo-se de que nenhuma mulher do mundo é digna de confiança – vão perceber que igualdade entre géneros não é coisa que abunde muito por aqui. Seja como for, a sua decisão está tomada: daquele momento em diante, dormirá com uma mulher diferente cada noite, mandando matá-la na manhã seguinte pois, dessa forma, não poderá ser traído nunca mais.
Três anos depois, com sacrifícios mais do que suficientes para abrir uma conta-poupança e quase sem virgens no reino – é verdade, as moças teriam de ser virgens -, uma das filhas do vizir – aquele que tinha por missão levar as inocentes moças à garganta do monstro -, Xerazade, pede para ser entregue como noiva ao rei, pois tinha uma ideia de como escapar ao triste fim que alcançaram as moças anteriores, poupando assim uma série de vidas, incluindo a vida da sua irmã – e, já agora, a sua.
Após o rei se divertir com Xerazade, Duniazade – a irmã desta – sugere que, antes de finar, a irmã conte uma história ao rei para este passar o tempo. Após respeitosamente pedir a permissão do rei, Xerazade começa a contar a extraordinária “História do mercador e do génio” mas, ao amanhecer e com muito jogo de cintura, interrompe o relato, propondo como quem não quer a coisa continuar a narrativa na noite seguinte. O rei, tal como o leitor, colocará o instinto assassino de lado, optando por uma boa história de embalar numa noite mal dormida mas sem sangue.
Pelo meio há mancebos zarolhos (do olho direito), ifrites com fartura, poetas e poemas, figuras belas que poderiam fazer furor no Instagram, perdões a troco de histórias, curiosidade indevida, violência doméstica (física e psicológica), assassínios perdoados, invocações várias ao Senhor Soberano Absoluto e Omnipotente, casamentos entre a mesma família e, a terminar e a começar cada uma das histórias, uma lengalenga que vai conquistando o leitor página a página. Um daqueles livros que, numa lista dos títulos a ler antes de patinar, marca presença na certa.
Hugo Maia, tradutor e antropólogo, estudou língua, história e cultura árabes, tendo preparado a primeira tradução feita em Portugal a partir dos manuscritos árabes mais antigos, menos embelezada e filtrada pelo imaginário ocidental. Sem dúvida um marco na história da edição no nosso país e um texto fundamental da literatura universal.
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