O espanhol Javier Cercas criou, no romance “Terra Alta” (Porto Editora, 2020), um protagonista deveras invulgar: Melchor Marín, um polícia com um passado problemático, filho de uma prostituta, que foi delinquente e se regenerou na prisão, em parte graças à leitura de “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Assim começou uma série que continua com “Independência” (Porto Editora, 2022), cuja acção se desloca da região catalã conhecida como Terra Alta para Barcelona, onde a presidente da câmara é alvo de chantagem através de um antigo vídeo sexual.
Antes do início da intriga principal, as primeiras páginas deste livro apresentam muito eficazmente o carácter de Melchor, enquanto polícia que não hesita em fazer justiça pelas próprias mãos. Só depois é estabelecida a ligação aos acontecimentos do volume anterior, ao mesmo tempo que a personalidade do protagonista é aprofundada. Há aqui vários elementos interessantes, desde o facto de viver atormentado por dois assassinatos, um mais recente e já resolvido – o da esposa – e outro mais antigo e ainda por resolver – o da mãe –, até à sua situação de viúvo com uma filha pequena, passando pela peculiaridade de se tratar de um bibliófilo que estuda biblioteconomia e chega a planear trocar a polícia por uma carreira de bibliotecário.
Porém, o desenvolvimento do enredo revela-se insatisfatório. O esclarecimento do homicídio da mãe de Melchor, no decurso da investigação do caso de chantagem, é uma coincidência demasiado grande, e o autor parece estar ciente disso, pelo que nos prepara para aceitá-la quando coloca o protagonista a reparar, mais de uma vez, na seguinte frase, escrita numa parede: “It’s likely that something unlikely will happen”. Mesmo que aceitemos suspender a descrença a este propósito, somos em seguida confrontados com um desenlace demasiado rápido e mal explicado, ao ponto de desejarmos que o autor tivesse investido mais na verosimilhança forense dos actos de Melchor e menos nas descrições das refeições e dos percursos pelas ruas de Barcelona.
A integração de acontecimentos reais na narrativa – como o terrorismo islamita em solo espanhol, ou a luta pela independência da Catalunha – é bem conseguida, mas as referências repetidas do autor a si próprio e à sua obra anterior, embora comecem por ter uma certa graça, tornam-se fastidiosas e acabam por soar pretensiosas.
Os ideais populistas e justicialistas que parecem estar na base desta história também geram desconforto: os políticos não prestam e as elites são perversas, sendo a punição dos seus crimes por via extra-judicial retratada como algo aceitável. Por oposição, um antigo companheiro de cela de Melchor é tratado com simpatia, embora tenha morto a mulher e o amante desta à martelada. O protagonista, que age como paladino das mulheres vitimizadas, parece não ver nenhuma contradição nesta amizade, talvez porque a mulher infiel não corresponde ao perfil das que lhe apraz defender.
As críticas de Cercas ao poder económico são pertinentes, bem como a abordagem multifacetada ao tema da independência, alternando entre as questões da soberania territorial, da liberdade que o dinheiro concede, e do valor da autonomia que alguns preservam, apesar de todas as pressões. Infelizmente, as melhores ideias não se reflectem na acção, contribuindo pouco para aumentar a qualidade geral do texto.
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