Não é certo que, pelas mãos de Grian Chatten, Conor Deegan III, Conor Curley, Carlos O’Connell ou Tom Coll, isto enquanto frequentavam o Dublin City Music College, alguma vez tenham passado livros como “A Metamorfose”, de Franz Kafka, ou “O Caminho para Wigan Pier”, de George Orwell. Literatura à parte, à boleia de vocais com alto perigo inflamável, uma percussão com a estranha mania de perseguir furacões e uma sensível e tocante dose de melodia, os Fontaines D.C. têm escrito – e cantado – um apurado um retrato da condição humana – um pouco como, nos anos 1990, os Pulp o fizeram com “Common People”, esse hino maior da classe trabalhadora (ou, se preferirem, da humanidade que vai vivendo com remendos).
Há uma química tremenda entre este quinteto, logo desde os tempos em que, em homenagem a uma personagem do Padrinho de Coppola – ou de Puzzo, regressando à literatura -, se auto-proclamaram Fontaines. Ameaçados legalmente por uma banda de Los Angeles com o mesmo nome, acabaram por ter de acrescentar D.C. à equação, algo que veio a conferir um lado mais geográfico e de assinatura: Dublin City.
A primeira tour chegou em 2017, levada em ombros pelo single “Hurricane Laughter”, a que se seguiu, dois anos mais tarde, a gravação de “Dogrel”, o disco mais visceral da banda, onde descobrimos temas como “Boys in the Better Land”, “Chequeless Reckless” ou “Too Real”. Seis meses depois a banda mudava-se para Los Angeles. Não para ajustar contas com aqueles que lhes tinham roubado o nome, antes para gravar “A Hero’s Death” (2020), disco onde a banda se distraiu e deixou entrar alguma claridade. De LA a banda seguiu para Londres, onde entre a mágoa, a saudade e a culpa de deixarem para trás a Irlanda gravaram “Skinty Fia” (2022), arrancado a uma expressão irlandesa que significa “a condenação do veado”. O veado gigante irlandês juntou-se às espécies extintas e, com isso, a banda aproveitou para questionar também a identidade e a angústia irlandesas. Um terceiro disco que faz deles, por esta altura, a mais entusiamante banda do universo indie rock.
Com uma blusa de cavas e o ar de quem tinha, por aquela altura, entrado num Pub para a primeira pint depois de mais um dia mal pago como assalariado fabril – ou transformado no talhante do Delicatessen da dupla Jeunet/Caro -, Grian Chatten e amigos subiram ao Palco Heineken para a sua estreia em Portugal, remarcada depois de o mundo ter acabado durante dois anos. E que estreia, amigos, que estreia.
Num cenário despojado, que envolvia um discreto jogo de luzes e a expressão Skinty Fia impressa num digital pano vermelho, os Fontaines D.C. devolveram-nos o sonho do rock sem artifícios, cuspido das entranhas, onde coexistem a electrónica com ares de assombração, o rock britânico dos anos 1990, o espírito punk e toda a angústia de se ser irlandês numa Britânia com o conservadorismo e a intolerância a correr-lhe nas veias.
Grian Chatten é um animal de palco, contido mas de ataques precisos, batendo com a pandeireta contra o peito, esmagando o tripé contra o palco, levantando os braços a apelar à insurreição. Um pedido abraçado pela venturosa turba, que não se refreou nos coros e que, espontaneamente, se organizou numa calorosa molhada, com muitos troncos nus à mistura, onde se ia puxando pelas cordas vocais e trocando sorrisos. Afinal, apesar de um mundo televisionado onde na maior parte do tempo não queremos pertencer a ninguém, a vida nem sempre é um vazio. Well done, lads.
Fotos: Hugo Macedo
Promotora: Everything is New
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