Quem, senão Robert Musil, autor do clássico “O Homem sem Qualidades”, se aventuraria a publicar, corria então o ano de 1936, parte do seu “Espólio em Vida” (Editora Narrativa, 2020)? É o próprio Musil, o irreverente escritor filosófico austríaco, que nos fala, na nota prévia, desta aventura irónica: “Porquê espólio? Porquê em vida? Há heranças literárias que são dons valiosos; mas, regra geral, os espólios têm uma semelhança suspeita com liquidações totais, a preço de saldo, por cessação de actividade. A popularidade de que, apesar disso, gozam talvez provenha de o mundo dos leitores sentir um fraquinho desculpável por um escritor que está a solicitar a sua atenção pela última vez. Seja como for, e sejam quais forem as ilações que possam tirar-se da questão de saber se se trata de um espólio sem preço ou, simplesmente, de um espólio a preço com desconto: decidi, de qualquer modo, impedir a edição do meu antes que se chegue ao ponto de já não haver nada que eu possa fazer. E o meio mais seguro para isso é editá-lo eu próprio em vida: quer isso faça sentido para toda a gente, quer não faça”.
E o que se esconde, então, dentro deste pequeno livro com o selo do Grupo Narrativa, que surge dividido em quatro partes? Retratos (I), o único bloco que apresenta alguns textos anteriores ao período entre 1920-1929, mostra-nos Musil no papel de um mentalista, com profecias feitas não raras vezes em tom jocoso, onde há um relato sobre a ilha dos macacos, em Roma; se fala de grosseiros dedos de pescador, que desempenham um trabalho sofisticado, quase como se dançassem com minhocas antes de as estenderem, já nos anzóis, “na selha da areia macia em camas pequenas, airosas”; descobrimos a Pensão Nunca-Mais, com hóspedes tão sui generis como fantasmas, republicanos, uma criada lindíssima ou um brit mesmo brit.
Observações antipáticas (II) e Histórias que não são histórias (III), segundo Musil, “evidenciam com clareza a época em que foram escritas e o que é nelas sarcasmo visa, em parte, estados de coisas passados”. Escritas para jornais, estas observações e histórias oferecem um pouco de tudo: um elogio às portas antigas, num paralelo com os punhos e os colarinhos destacáveis; um olhar alternativo sobre os monumentos – “o que mais chama a atenção nos monumentos é ninguém reparar neles”; um virar de olhos ao universo kitsch – “será possível que o kitsch, quando ganha mais uma e, depois, duas dimensões de kitsch, se torna mais suportável e, assim, cada vez menos kitsch?”; o pessimismo cultural e o entusiasmo do agora; um tipo dado ao culturismo, sem grande saída amorosa – o melhor que conseguiu arranjar foi um “esquilinho” -, que nos jornais só lê a parte desportiva; um olhar pouco apreciativo sobre a condição humana – “hoje em dia, para encontrar um carácter, é mesmo preciso andar com uma lanterna.(…) No tempo da nossa juventude, o carácter era aquilo que, apesar de não se ter, fazia com que se levasse uma sova”; sobre aquilo que, mesmo escondido, é em nós imutável: “Tinha a sensação constante de que a velha pessoa estava ainda dentro dele. Estava dentro dele, embrulhada na réplica maior e carnuda da forma original”; ou uma reinvenção da clássica anedota do português, o francês e o inglês, aqui dando lugar aos senhores Pim, Pam e Pum, que juntos vão à caça.
A fechar temos O Melro (IV), talvez o momento mais pessoal deste Espólio, onde se discorre sobre a amizade – “no fundo, uma amizade de juventude é tanto mais estranha quanto mais velhos vamos ficando” -, se sente o toque de deus numa “tranquilidade estranha”, que chega quando se vive “em permanência debaixo de fogo”, ou onde Musil aborda a relação pouco dada com a mãe, num sublime retrato da infância contado olhos nos olhos com o leitor: “É que, estás a ver, nós estamos habituados a ter a cabeça sem apoio ou a esticar-se para o nada, porque temos algo sólido debaixo dos pés; mas a infância quer dizer não estar seguro nas duas extremidades e, em vez das tenazes do adulto, ter ainda as mãos macias de flanela e estar sentado em frente de um livro como se se planasse pelo quarto sobre uma folhinha por cima de desfiladeiros”.
O livro encerra com um posfácio da autoria de António Sousa Ribeiro, que destaca a ideia da precariedade do indivíduo e da sociedade moderna, ideia lançada por Musil que nos terá sobrevivido. Um livro que se revela “um multifacetado e sofisticado laboratório de escrita experimental”, e que serve como aperitivo para a necessária (re)leitura desse monumento chamado “O Homem sem Qualidades”, editado em Portugal pela Dom Quixote em três volumes.
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