“É uma tristeza ser negro”, cantam em uníssono os residentes de Catfish Row. Nesta comunidade africana de Charleston, na Carolina do Sul, vivem cidadãos resignados ao seu triste fado de trabalho duro, injustiças e abusos raciais. “Porgy e Bess” (Livros do Brasil, 2022), que chegou às livrarias portuguesas por via de uma sublime tradução de Jorge de Sena, narra a vida gregária dos habitantes de Catfish Row e foca-se na sina do protagonista Porgy, da sua companheira Bess, e de tantos outros que tiveram o infortúnio de ter pele negra nos Estados Unidos da América daquela época.
Por volta de 1920, período no qual decorre o magnum opus de DuBose Heyward, a segregação racial contradizia o sempiterno mantra dos EUA — para muitos, a América nunca foi sinónimo de liberdade, muito menos de oportunidade. Na prática, a narrativa de “Porgy e Bess” desenrola-se algures entre o final da era esclavagista, em que os afro-americanos eram propriedade de alguém, e o período em que os negros obtiveram, finalmente, o pleno direito a ter propriedade (o que só viria a acontecer na segunda metade do século XXI).
Se há 100 anos era incomum surgir um romance cujo protagonista fosse negro, bem menos comum seria o facto do personagem principal ser não um forte e irredutível herói, mas um frágil e aleijado mendigo. Tal como Martin Luther King Jr. posteriormente se autoproclamou, Porgy é um sonhador. Pode não ter a força dos possantes estivadores africanos ou a desenvoltura das cozinheiras negras, mas aspira a uma vida feliz, embora aceite o injusto futuro que lhe foi traçado à nascença pela deficiência motora e a cor da pele. A questão da predestinação como um incentivo à luta pela igualdade social é paradoxal, mas para Porgy não existe qualquer paradoxo. Condicionantes à parte, a batalha pela felicidade é real e faz parte do seu destino.
Nascido e criado em Charleston, Edwin DuBose Heyward, o autor de “Porgy e Bess”, trabalhou nos desembarcadouros da cidade, onde esteve exposto à cultura afro-americana e onde aprendeu rezas, superstições, lendas e canções que descrevem a “desgraça de ter pele negra” e que viriam a dar o mote para este romance.
“Porgy e Bess”, que mais tarde seria catapultado para os palcos da Broadway por George Gershwin, é uma obra realista que celebra o estoicismo e o espírito resoluto dos afro-americanos no seio de uma sociedade intolerante e racista. Enquanto objecto literário, este é, segundo Jorge de Sena, “um belíssimo poema em prosa”, que consegue a difícil proeza de, em centena e meia de páginas, colocar os leitores no centro do “bairro negro” de Catfish Row e na pele dos protagonistas.
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