Kimitake Hiraoka, novelista e dramaturgo japonês, mais conhecido pelo pseudónimo Yukio Mishima, nasceu em 1925 e cometeu suicídio ritual em 1970, depois de se ter envolvido num golpe de Estado falhado. Tendo as suas intervenções políticas e sociais sido marcadas pelo tradicionalismo militar e espiritual dos samurais, bem como pela crítica à via de ocidentalização seguida pelo Japão no século XX, não surpreende que os seus ideais transpareçam nas obras que deixou, como é o caso de “Neve de Primavera” (Livros do Brasil, 2021).
Aqui, a ocidentalização é abordada recorrentemente, umas vezes de forma sóbria e factual, outras satirizada. Porém, acima dela, sobressai a transição mais profunda de uma era para outra, algo de que o protagonista e o seu melhor amigo estão bem cientes: “Agora que se acabaram as velhas guerras, começou um novo tipo de combate; esta é a era da guerra das paixões”.
A narrativa principia pouco depois do final da Guerra Russo-Japonesa, quando o protagonista, Kiyoaki Matsugae, tem 18 anos de idade. O pai, apesar de deter um título nobiliárquico, sente-se embaraçado pelas origens modestas da família, por isso envia o único filho, em tenra idade, para viver e ser educado na casa de um nobre da corte, projectando para ele “uma perfeita sintonia entre os nobres da velha corte e a nova nobreza”. Todavia, o rumo seguido pelo desenvolvimento do filho torna-se uma fonte de inquietação.
O atraente Kiyoaki tem uma personalidade complexa: propenso à melancolia, sente-se mais real no mundo onírico do que no quotidiano e deixa-se conduzir por ressentimentos, acreditando que os actos dos outros provêm de raciocínios tão retorcidos quanto o seu. O autor explica que ele é extremamente sensível e “sempre fechara com firmeza as portadas do coração para o proteger do sol nascente, receando que um só raio da sua luz dura e impiedosa o atingisse”, mas isso não torna mais fácil sentir empatia por ele, perante as atitudes que o vemos assumir para com a mulher amada e o único amigo que possui. A bela e vivaz Satoko, filha da família que o acolheu, é alvo de um tratamento que chega a ser ignóbil, simplesmente porque, até perceber que a ama, Kiyoaki deseja vingar-se das “indescritíveis ansiedades” em que ela o faz mergulhar. Por sua vez, o amigo, Honda, é obrigado a tomar várias precauções para preservar o afecto de Kiyoaki, sem que este retribua com uma consideração semelhante. A compreensão de tal dedicação é dificultada pelo facto de Honda ser caracterizado como um representante do racionalismo e entender a assimetria dessa amizade.
Honda será testemunha das consequências trágicas da demora de Kiyoaki a reconhecer o seu amor por Satoko. Embora a omnipresença de maus presságios torne o desenlace previsível, a narrativa reserva algumas surpresas e cativa-nos com o retrato de uma época particular da História do Japão. Além disso, é enriquecida com reflexões religiosas e filosóficas, jogos de poder interessantes entre amos e criados, e uma descrição impiedosa da maneira como o amor pode ameaçar o poder político.
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