Por volta de 2009, Sharon Van Etten era uma rapariga muito dada à timidez, que se vestia despreocupadamente e para quem as luzes da ribalta pareciam estar a anos-luz – apesar da qualidade musical revelada, desde logo, em “Because I was in love”. Durante três anos, Sharon foi caminhando de mansinho, até que, em 2012, lançou “Tramp”, um longa-duração que contou com a produção de Aaron Dessner (The National) e no qual participou boa gente como Jenn Wasner (Wye Oak), Zach Condon (Beirut) ou Julianna Barwick. Sharon tornou-se mais confiante, retocou o visual e, musicalmente, refinou o som até dar de caras com o ponto-de-rebuçado, num dos discos de 2012 que mereceu o selo de “imperdível”. Foi nesse mesmo ano que nos ofereceu uma noite memorável no Lux (Lisboa), celebrando uma música que tinha, nesse momento do calendário, a country no coração e o rock na circulação sanguínea.
Dez anos depois – e com várias passagens por Portugal, entretanto -, pode dizer-se que muita coisa mudou na vida – e na música – de Sharon, com muitos discos pelo caminho, a participação numa série da Netflix – The OA – a chegada da maternidade ou uma pandemia que virou o seu mundo – e o nosso – do avesso. Pandemia que está no centro de “We’ve Been Going About This All Wrong”, disco gravado este ano no seu novo estúdio caseiro em Los Angeles. Um disco pessoal que olha de frente para os dois últimos anos e que, segundo a própria, envolveu redefinir as suas relações e prioridades, bem como – e mais do que tudo – interrogar a sua ideia de esperança, capturando pelo caminho todo o absurdo e a ansiedade de se ter a vida virada do avesso por forças externas que, a serem uma peça de teatro, provavelmente teriam o dedo de Mr. Shakespeare.
Na passada terça-feira (31 Maio), a Aula Magna foi a primeira paragem da nova tour de Sharon Van Etten, que mostrou que a sua missão de constante expansão sonora continua a ser desempenhada na perfeição. Com uma indumentária que poderia ter sido sacada ao guarda-roupa de Carrie-Anne Moss, a Trinity de Matrix, a cantora mostrou o seu contentamento por se afastar dos Estados Unidos e estar de volta à boa vida dos concertos: “Esta é a 1ª tour depois de dois anos loucos. É sempre uma boa desculpa para pôr um eyeliner”.
“We’ve Been Going About This All Wrong” foi o disco que mais rodou nesta noite, mas não faltaram viagens no tempo até alguns clássicos Van Ettenianos, retocados sem recurso a incisões ou cirurgias plásticas: “Save Yourself” é o mais perto a que chegamos de pôr um pé na Country; “Every Time The Sun Comes Up”, um dos momentos maiores da noite, soa a uma versão radioactiva de “Killing an Arab”, dos The Cure, a que não faltam uns teclados a la anos oitenta – que poderiam bem ter sido emprestados pelos OMD; “Give Out”, já no 1º encore, é Sharon Van Etten em queda livre, cantando nos píncaros, levando as cordas vocais ao sétimo céu – o lugar onde a sua voz melhor se faz ouvir.
Da nova rodela há, por exemplo, “Far Away”, que traz um inesperado momento a capella, como se uma das cenas de “Fever Pitch” estivesse a ser rodada na Aula Magna; “Born”, música para um baile de finalistas de bom gosto, começa de mansinho até nos encostar à parede, num momento de tudo ou nada onde há que decidir entre beber um jarro de penalidade ou escapar ao disparo de uma bala; “Home To Me”, que soa como se os Beach House tivessem caído num caldeirão de peiote; ou “Mistakes”, que por momentos relembra “Atomic” – tema incluído no primeiro Trainspotting – a passar com as rotações todas trocadas – e que vale palmas a acompanhar.
A banda que acompanha Sharon em palco mereceu rasgados elogios, primeiro gritados por alguém do público a que, logo depois, se juntou a bênção de Sharon: “Soaria muito aborrecida sem eles”. O grande final deu-se com “Seventeen”, talvez o maior hit de Sharon até à data, onde esta, à beira do palco e fazendo com o corpo um ângulo de 90º praticamente perfeito, nos gritou um hino à memória, à efemeridade da existência e à sombra que deixamos a quem fica.
A abrir a noite estiveram os The Weather Station, que é como quem diz a canadiana Tamara Lindeman – na companhia de Macie Stewart, que foi alternando entre a guitarra, as teclas e o violino -, que viajaram sobretudo por “How Is It That I Should Look at the Stars”, o último e muito despojado disco – lançado após o exuberante “Ignorance” -, que soa como uma daquelas rodelas escritas após um coração ter sido feito em frangalhos.
Um concerto dado na quase penumbra, onde ainda houve tempo para Tamara recordar o mail que há anos recebeu de uma miúda chamada Francisca Cortesão, e que a levou a vir a Portugal tocar pela primeira vez a Portugal fabricando uma “memória fantástica”. Um concerto onde foi a palavra e a voz de Tamara que brilharam, despojadas, cabendo aos instrumentos um lado cénico pouco interventivo, dando espaço a uma intimidade que chegou a ser tocante.
Depois de terem passado ontem pelo Theatro Circo, em Braga, os The Weather Station prosseguem a sua mini-tour nacional com mais três datas: esta noite (2 Junho) no M.Ou.Co, cidade do Porto; dia 4 de Junho em Setúbal, no Cinema Charlot; e, a fechar no dia 5, uma ida ao Teatro das Figuras, em Faro.
Fotos: João Padinha / Everything is New
Sem Comentários