Como conseguiam os nazis compatibilizar as suas crenças raciais com as façanhas civilizacionais dos povos que consideravam inferiores? Heather Pringle explica, em “O Delírio Nazi: Os Académicos de Himmler e o Holocausto” (Casa das Letras, 2022): primeiro, postulavam que todos os avanços culturais decisivos eram da responsabilidade dos seus próprios antepassados idealizados, a que chamavam “arianos”; depois, esforçavam-se por encontrar provas que sustentassem tal mundivisão, não hesitando em distorcer factos e propagandear teorias desacreditadas.
Este livro centra-se nas actividades da Ahnenerbe, uma organização fundada em 1935, cujo nome significa “Herança Ancestral”, e que tinha como objectivo formal “promover a ciência da antiga história intelectual”. Na prática, isso consistia em obter e divulgar indícios arqueológicos que sustentassem pretensões territoriais e uma visão mística do passado, com o intuito de estabelecer, no leste da Europa, colónias feudais de agricultores-soldados perfeitos.
Contudo, alguns membros basilares da instituição – como um que se declarava descendente do deus nórdico Thor – tornaram-se embaraçosos para as altas-patentes nazis, as quais almejavam usar a respeitabilidade da ciência para camuflar projectos políticos. Por isso, numa segunda fase, foram recrutados para a Ahnenerbe académicos mais hábeis em adaptar as suas investigações às novas necessidades do Reich, incluindo ideólogos convictos, homens fascinados pela proximidade aos corredores do poder e carreiristas que alinhavam com tudo em troca de financiamento. Em plena guerra havia ainda o atractivo da dispensa do serviço militar, caso os seus trabalhos os tornassem importantes aos olhos das chefias.
Vários capítulos do livro são dedicados a projectos específicos, demonstrativos da abrangência dos interesses da Ahnenerbe e da polivalência dos seus elementos. Por exemplo, de entre as missões pela Europa, pela Ásia e pela América do Sul, foram politicamente relevantes as expedições arqueológicas ao Médio Oriente, as quais proporcionaram oportunidades para explorar ressentimentos contra ingleses e franceses, recolher informações, espalhar o nazismo e estabelecer alianças com líderes locais, omitindo convenientemente as teorias raciais que os classificavam muito abaixo dos arianos. Já nos territórios ocupados pela Alemanha, vários académicos integraram unidades militares, dedicando-se à pilhagem de museus e à avaliação do “valor racial” dos seus habitantes. Como seria de esperar, também não faltam aqui relatos de atrocidades em campos de concentração, incluindo experiências com seres humanos.
Por oposição aos empreendimentos que descreve – os quais estavam longe de alcançar um estatuto científico –, Heather Pringle fez um extenso e meritório trabalho de investigação, recorrendo sobretudo a material de arquivo. Aparentemente, uma parte dos documentos consultados não foi estudada logo após a segunda guerra mundial, por diversas razões, o que permitiu que muitos elementos da Ahnenerbe refizessem as suas carreiras, modelando mais uma vez o passado de acordo com os interesses do momento. Os seus percursos, bem como o de Himmler, uma figura-chave do regime nazi, fundador e promotor da Ahnenerbe, além de líder das SS, são narrados num estilo de escrita claríssimo, capaz de desenredar os fios de uma teia complexa, sem abdicar de pontuar ocasionalmente o texto com um tom mordaz que acentua os absurdos e as terríveis ironias da história.
Sem Comentários