A pergunta é apenas isso: uma pergunta. Até porque, quem escreve estas linhas, desconhece se José Saramago terá alguma vez visitado a Lourinhã, aproveitando para provar umas das melhores aguardentes disponíveis no globo terrestre. O que interessa aqui é falar do 12 de Maio, dia em que a Lourinhã festejou à grande o centenário do nascimento de José Saramago, com um dia do Livros a Oeste dedicado quase em exclusivo ao Nobel português.
À tarde, a julgar pelos muitos títulos e extenso currículo – investigadora doutorada, integrada no Centro de Humanidades (CHAM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Professora Auxiliar da Universidade Lusíada de Lisboa, onde coordena o Grupo Cultura e Literatura, &etc. -, os alunos da Escola Secundária de Pinhal Novo terão pensado que iriam apanhar uma valente seca. A verdade é que Margarida Rendeiro deu cartas, transformando a obra de José Saramago numa Guerra dos Tronos onde só faltam mesmo os dragões.
Margarida Rendeiro começou por falar do “Frankenstein” de Mary Shelley, livro inaugural de um género que, se na Europa era praticado em oposição ao real, tinha o aspecto de fusão na América do Sul – tendo Saramago optado por uma mistura das duas geografias. “O fantástico faz acordar os sentidos. Desafia as leis da racionalidade. Abre o pensamento, abre novas possibilidades. A alegoria é o tema central, o que nos faz pensar para além da história que nos é contada, e que nos faz pensar em termos das nossas próprias escolhas”.
Seguiu-se uma viagem pela obra de Saramago, revisitando alguns dos livros que incorporaram o fantástico ou que partiram da premissa “e se?”: no “Memorial do Convento”, é Blimunda que consegue ver o interior das pessoas e todos os seus pensamentos e vontades, em oposição ao mais racional Baltazar, que precisa da luz para conseguir ver. Uma dualidade que Saramago utiliza para estudar a natureza humana, o poder ou a intolerância religiosa; “E se Ricardo Reis, não tendo morrido, voltasse e se encontrasse com Fernando Pessoa?”. Uma pergunta que poderá ser levantada no livro “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, e que acaba por levar a uma reflexão sobre Portugal e o seu futuro, numa linha ténue entre o sonho e o pesadelo; e o que dizer de “A Jangada de Pedra”, que levanta um “e se, de repente, alguém fizesse um risco no chão com uma vara, e isso provocasse que a península ibérica se separasse de França e da Europa?”. Um livro escrito em tempos de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, e no qual Saramago, numa das leituras possíveis, questionou se teríamos mais a ver com a Europa ou a América do Sul.
Não faltou falar da importância dos cães na literatura de José Saramago, da viragem estilística que foi “Ensaio sobre a Cegueira” – onde a realidade portuguesa deu lugar ao universal – ou até mesmo do universo Marvel e da mitologia grega. No final, como que prevendo a dura batalha que os mais entusiastas da sessão irão travar quando abrirem as páginas de um livro de José Saramago, Margarida Rendeiro deixou um sábio conselho: “Em caso de dificuldade, experimentem, como o próprio Saramago aconselhou, lê-lo em voz alta”.
Mais tarde, Miguel Real e João Céu e Silva deram uma verdadeira masterclass sobre José Saramago, numa sessão que merecia ter sido gravada para a posteridade. João Céu e Silva, autor de “Uma Longa Viagem com José Saramago” (ed. Porto Editora), contou-nos que o projecto desta série de livros de entrevistas começou com Álvaro Cunhal e a ideia de falar de Manuel Tiago e dos seus livros – a que se seguiu, depois, Miguel Torga e vários outros nomes. “Ia na ponte sobre o Tejo quando me lembrei do Saramago. Falei com o Zeferino Coelho para apresentar o projecto. O Saramago não quis, pediu-me dez meses. Dez meses depois voltei lá. Vivia a 150 metros de minha casa. O livro deu 400 páginas, o que significa que Saramago falou muito. Penso que ficou com a ideia de que despachava aquilo numa conversa. Só a primeira durou 4 horas e meia. Já não tinha fitas para gravar mas, por respeito, tive medo de o dizer”.
Um livro que implicou muitas horas de conversa e uma inesperada ida a Lanzarote, poucos dias depois de Saramago ter saído do hospital após sobreviver a uma pneumonia muito grave. Lugar onde Saramago previu que Portugal e Espanha fariam parte de uma união ibérica, numa notícia que deu a volta ao mundo e cujas muitas notícias Céu e Silva compilou num caderno que ofereceu a Saramago – que terá ficado radiante com o alcance da coisa.
Miguel Real, que escreveu sobre José Saramago um dos ensaios presentes na colectânea “Uma Viagem Infinita” (ed. Tinta da China) e o ensaio “Pessoa & Saramago” (ed. Dom Quixote), começou por falar do narrador Saramago, em 1982, no tempo do “Memorial do Convento”, que foi começando a ser desenhado quando, em 1976, José Saramago ficou desempregado e partiu para o Alentejo com a ideia firme de se tornar escritor. Nesse tempo, durante quatro meses, ficou a viver numa cooperativa em Lavre, para os lados de Montemor-o-Novo, onde à noite escutava as conversas dos trabalhadores da cooperativa e as suas histórias de miséria, privação e obsessão, mas também histórias como “o homem que à noite se transformava em lobisomem ou galinha ou o que andava sempre bêbado”. Histórias que acabariam por ser colocadas em “Levantado do Chão”.
Para Miguel Real, Saramago esteve muito tempo preso ao estilo neo-realista associado ao PCP e a escritores como Manuel Tiago, onde havia “uma literatura assumidamente moral”. O clique deu-se dois anos depois da chegada ao Alentejo, quando começou a escrever à mão e a deixar o inconsciente fluir. “Tão depressa que deixa de usar sinais para não baralhar. Só vai utilizar a virgula e o ponto. Tudo o resto deita fora. Quando vai passar para a máquina de escrever conclui que fica bem assim. Não são sinais gramaticais, são pausas musicais. Não há pontos finais no sentido tradicional, não há reticências. A frase acaba ou não acaba”. Sobre “Levantado do Chão”, Miguel Real diz que Saramago “reproduz aquilo que os alentejanos lhe contaram, escreveu uma oralidade. O próprio dizia que os seus livros eram para ser ouvidos, não lidos”. O passo maior de Saramago aconteceu com “Memorial do Convento”, para o qual Saramago leu muita literatura barroca – e muito Padre António Vieira -, e que resultou, para Miguel Real, no milagre Saramago: “misturar a oralidade popular com a linguagem barroca do século XVIII. Linguagem erudita e abstracta barroca com a linguagem popular”. Dito de outra forma, “pôr o povo a falar barroco”. Algo que terá continuado em “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e que parou apenas n`“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, numa espécie de “desbarroquizacão da sua escrita”.
Não faltaram episódios paralelos – como o saneamento no DN em 1975 e as duas versões da história -, paralelismos com Fernando Pessoa – “Pessoa tem os heterónimos, Saramago tem as suas personagens, afirmou Miguel Real, relembrando que o último disse “os personagens são os meus mestres” – ou curiosidades com ar de vidência, como um grafologista que João Céu e Silva visitou e que, sem saber que se tratava da letra de Saramago, intuiu pelas variações da letra A que, a certo ponto da linha temporal, este se tinha divorciado. E esta, hein?
A fechar o dia Saramaguiano estiveram Guilherme Oliveira Martins e Carlos Vaz Marques, numa conversa conduzida por João Morales. Carlos Vaz Marques, que em tempos teve um projecto não concretizado de uma biografia de José Saramago, destacou o seu autodidatismo, comparando a sua busca de superação à de… Cristiano Ronaldo. “Não havendo estruturas, os exemplos surgem da individualidade”. Destacou a ruptura de Saramago com o seu percurso natural, que o acabou por conduzir a “Levantado do Chão”. “Uma ruptura que tem a ver com o próprio universo ideológico de Saramago. Uma marca ideológica polarizadora que com o tempo deixou de o ser” mas que, durante muito tempo, levou à criação de “uma tensão que criou uma clivagem nos leitores, afastando-os do literariamente propriamente dito“. Tal como tinha sido referido por Margarida Rendeiro na sessão com os alunos do secundário, Vaz Marques considera que “os romances partem todos de uma ideia inicial extraordinária. Uma ideia que capta imediatamente a atenção , o que faz dele um óptimo marketeer”.
Sobre “Herdeiros de Saramago”, a premiada série exibida pela RTP, recusou a ideia de homenagem. “Aquele que tem uma proximidade maior no início da sua carreira é Valter Hugo Mãe, com “O Remorso de Baltazar Serapião”. A ideia foi antes celebrar a individualidade de cada um deles, e quase não se fala de Saramago. São herdeiros no sentido em que Saramago, de forma generosa quando ganhou o Nobel, teve o gesto de instituir o prémio como forma de dar lugar aos mais novos”.
Guilherme de Oliveira Martins destacou o longo percurso até à excelência. “Em Claraboia ele estava muito longe”. Um longo caminho que terá conhecido o “paradoxo da libertação da literatura”, mas que levou a um reconhecimento global: “O Nobel é atribuído como um valor seguro, o que nem sempre acontece”. Fala de Júlio Pomar para ilustrar a libertação de Saramago do neo-realismo, destacando na sua obra “a capacidade de emancipação e a capacidade de recusar a facilidade”. Também o cão foi destacado por Guilherme Oliveira Martins, “um símbolo da coerência e da fidelidade” sendo “o cão das lágrimas – de Ensaio Sobre a Cegueira – uma das figuras mais humanas que encontramos em Saramago”.
Foi também mostrado um testemunho/entrevista de Carlos Reis, que recusou a propriedade da Fundação José Saramago sobre as comemorações do centenário. O Comissário para as Comemorações do Centenário preferiu destacar “a importância do estudo, fora das luzes dos holofotes, que permite a sua continuidade. Estamos a celebrar os cem anos de Saramago para outros celebrarem os duzentos anos”.
Sobre Saramago, falou de um homem “austero, reservado, um pouco sisudo, preocupado com as coisas à sua volta e em não adormecer com as luzes da fama. Deixou um legado de sedução e fascínio. É um escritor que vai ficar, deixou grandes romances. Um escritor que oferece um olhar profundo sobre temas filosóficos e éticos, capazes de se renovar”. Em jeito de provocação e num exercício futurista, e antecipando de alguma forma as comemorações dos 200 anos do nascimento de José Saramago, Carlos Reis deixou a questão: “Mas daqui a cem anos será que ainda haverá literatura?”.
Fotos: Rita Chantre
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