Cosmopolita e poliglota, Somerset Maugham (1874-1965) desfrutava, enquanto escritor já moderadamente famoso, de uma relativa liberdade para cruzar fronteiras na Europa da Primeira Guerra Mundial. Tais qualidades fizeram dele um espião perfeito para o Departamento de Informações britânico, que não tardou a recrutá-lo, e “Ashenden – O Agente Britânico” (Asa, 2021) é baseado em algumas das suas actividades. Embora o autor declare que procedeu a alterações “para efeitos ficcionais”, por considerar que “a realidade não é boa contadora de histórias”, uma vez que “não tem qualquer noção de clímax e desbasta os seus efeitos dramáticos até à irrelevância”, a aproximação à realidade foi tal que, segundo se conta, os serviços secretos russos criaram uma unidade especial dedicada à leitura de romances de espionagem britânicos.
À semelhança do autor, Ashenden é “um escritor inglês às portas da meia-idade”, recrutado para os serviços secretos britânicos por conhecer várias línguas e ter na sua ocupação “um excelente disfarce”, podendo visitar outros países sob o pretexto de estar a escrever um livro. Além disso, presume-se que perceba mais da natureza humana do que a maioria das pessoas. No fundo, é alguém que possui “uma crença convicta na estupidez do animal humano” e age desapaixonadamente, como tudo fosse um jogo de xadrez, o que é precisamente o que as suas chefias desejam em certo tipo de missões. O facto de estar bem ciente de ser “uma pequena engrenagem numa máquina vasta e complexa”, que intervém no princípio ou no fim de um plano, ou em algum incidente pelo meio, mas raramente tem oportunidade de saber o resultado das suas próprias acções, proporciona ao autor uma ocasião para criticar a tendência literária do seu tempo, colocando o protagonista a considerar a sua situação tão insatisfatória “como aqueles romances modernos que dão ao leitor uma série de episódios desligados e esperam que ele os una e construa mentalmente uma narrativa conexa”.
Porém, ironicamente, esta obra também não apresenta uma intriga central que una os diferentes capítulos. Ainda que alguns tenham continuidade entre si, outros podem ser lidos como contos independentes. Por vezes, o final é deixado em aberto, ficando o leitor sem saber coisas como a mensagem que uma idosa moribunda desejava transmitir, ou o resultado do lançamento da moeda que determinaria a colocação – ou não – de uma bomba.
No seu conjunto, o livro distingue-se dos romances de espionagem baseados na acção, sendo a existência do protagonista comparada à de um funcionário público e consistindo a maioria das suas missões no fornecimento de informação ou dinheiro a outros agentes. Talvez seja mais realista, mesmo quando inclui momentos patéticos, mas, infelizmente, as excentricidades atribuídas a várias personagens secundárias tornam-nas irritantes. Apesar disso, o distanciamento introspectivo praticado por Maugham e pelo seu alter ego, ao permitir-lhes verem-se em simultâneo como actores e espectadores dos acontecimentos, oferece ao leitor uma visão, não desprovida de fascínio, da vida enquanto comédia.
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