Irène Némirovsky nasceu em Kiev no ano de 1903, então parte do Império Russo, no seio de uma família abastada. Com a chegada da Revolução Russa, a família decide fugir do Exército Vermelho, fazendo escala na Finlândia antes de se instalar definitivamente em Paris. “David Golder”, o primeiro romance assinado por Némirovsky (1929), teve reconhecimento imediato, tendo sido adaptado ao cinema um ano após a sua publicação. Um sucesso que continuou com os livros seguintes, mas que foi interrompido com a chegada da guerra a França, reflexo da sua ascendência judia, algo que resultou na proibição da venda dos seus livros. Em 1942 foi detida e deportada, pelo governo colaboracionista de Vichi, para o campo de concentração de Auschwitz, lugar onde viria a morrer com apenas trinta e nove anos. A recuperação internacional da obra de Irène Némirovsky deu-se em 2004, com a publicação do até então desconhecido e inacabado “Suite Francesa”, romance que viria a receber um póstumo Prémio Renaudot.
Por cá, a missão de divulgar a obra de Irène Némirovsky tem sido assumida pela Cavalo de Ferro. Após a publicação de “As Moscas de Outono” e “Jezabel”, chegou às livrarias nacionais “A Presa” (Cavalo de Ferro, 2021), uma tragédia em forma de romance que nos conta a ascensão e queda de Jean-Luc Daguerne. Um tipo ambicioso a quem cabe atravessar uma época onde, mais do que nunca, se torna importante conhecer – integrar – os meandros do poder e da política, e que ao longo dos anos irá passar de predador a presa, incapaz de lidar com os artifícios que criou ao longo de uma vida (mal) calculada.
Laurent Daguerne, pai de Jean-Luc, era na recta final da sua existência “um homem baixo, frágil, de tez lívida, e o seu olhar cansado, profundo, como que voltado para dentro e indiferente ao mundo visível, revelava o homem atingido pela morte”. Alguém que, para Jean-Luc, tinha “a consistência de uma sombra”, incapaz de deixar atrás de si um legado, uma marca distintiva, um rasto de ambição. Ambição essa que se torna o grande motor da existência de Jean-Luc que, impulsionado pelo desencanto da sua juventude e receando “a ternura inquieta do pai”, parte em busca do “acesso a um mundo que dispensa os bens” do próprio mundo, escolhendo o bom senso em detrimento do amor, vendo precocemente instalar-se em si a cega ambição e um insípido calculismo.
Com o objectivo de subir na vida casa-se com Édith Sarlat, filha de um importante banqueiro, uma mulher que, para si, “era apenas sensualidade”, tendo “tanto coração e tanto cérebro como uma boneca!”. Paralelamente, vive uma relação algo doentia com uma amante, que abandona por não fazer parte do seu projecto de ascensão, mas que, num ponto tardio de não retorno, se irá tornar no seu fantasma, o lembrete de uma vida que escolheu desperdiçar.
Irène Némirovsky faz um retrato primoroso da burguesia europeia das primeiras décadas do século xx, retrato esse que galga décadas e se revela um olhar intemporal sobre a humanidade em tempos de crise, a sede de poder e ambição, a conduta humana e a eterna insatisfação que nos alimenta enquanto espécie. A lição de vida, essa, poderá ser descoberta antes do último sopro: “O sucesso, quando ainda está longe, tem a beleza de um sonho, mas, quando chega ao plano da realidade, parece sórdido e mesquinho”.
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