Hadley Freeman teve o decoro e o bom senso de não usar, como vem sendo política de mau gosto e insensibilidade de muito escritor ou selo editorial nos dias que correm, a palavra Auschwitz na capa de “Segredos Estilhaçados” (Casa das Letras, 2021). Mesmo que, como se lê no subtítulo, se trate de uma “história e confissões de uma família judia separada pelo holocausto”.
O livro começou a ser desenhado após a descoberta de uma caixa de sapatos no roupeiro, “atrás de uma pilha de carteiras de pele”, que continha “os segredos que a minha avó conseguira manter durante toda a vida e mais alguns anos após a sua morte”. É a história da avó Sara e das suas várias ramificações na árvore genealógica que Hadley Freeman decidiu contar neste livro, que é também uma história sobre amor, sacrifício e perseverança, assimilação e tradição, abandono e renascimento, sobre a importância de conhecermos o passado para nos aventurarmos no futuro, lembrando que aquilo que nos une é muito mais do que aquilo que a ciência tem para vender.
Hadley Freeman começa, desde logo, por mostrar ao leitor que esta será uma biografia na qual a (boa) Literatura tem um peso importante. Como quando descreve a quase ausência de uma cronologia familiar – “Será que recordo memórias ou são memórias de memórias? Na minha família, a linha que separa ambas nem sempre é bem definida” -, o abismo físico que separava Sara do marido – “Parecia tão francesa quanto o meu avô parecia americano, com a elegância de uma pintura de Renoir, mas com a melancolia de um quadro de Hopper” – ou, ainda, o próprio abismo que sempre a separou da avó, um abismo de certa forma auto-imposto – “…nunca deixou de me parecer triste e a sua tristeza nunca deixou de me perturbar. Por isso nunca permiti que se aproximasse de mim”.
Foi talvez esse vazio, essa relação por cumprir, que motivou Hadley Freeman, já a meio dos seus vinte anos, a tomar a decisão de escrever sobre a sua avó. Ainda que, então, o pretendesse fazer de forma indolor: “Iria escrever acerca da sua relação com a moda”. Algo que mudou com a descoberta dessa caixa, que continha uma série de itens tão incríveis quanto misteriosos, como um telegrama enigmático da Cruz Vermelha ou um desenho assinado pela mão de Pablo Picasso, que levou a algo bem diferente. Um livro que, curiosamente, decorreu na altura da realização do referendo sobre o Brexit e da eleição de Donald Trump. O que, não estando directamente relacionado com os judeus, revela uma mudança política que implicou uma ideia – e políticas – de “distanciamento em relação aos que são designados vagamente por «estranhos»”, um reflexo do crescimento aberto do anti-semitismo que foi recuperado também em muitos lugares da velha Europa.
Numa entrevista recente ao Deus Me Livro, Juan Gabriel Vásquez defendia ser fundamental partir dos dilemas particulares, muitas vezes invisíveis, para chegar à universalidade do pulsar humano, aos acontecimentos fundamentais, entre paradoxos, divisões e contrastes, que animam o ser humano. Algo que, por falta de vontade ou de ferramentas, a História não consegue fazer. É, de certa forma, aquilo que Hadley Freeman faz em “Segredos Estilhaçados”, arranjando forma de acrescentar um ponto ao conto mil vezes contado do Holocausto, seja pelo papel activo que a França desempenhou no extermínio de muitos judeus – e, de forma mais indirecta, até mesmo os Estados Unidos – ou o modo em como, através da sua história familiar, conta também a história universal que muitos judeus da Europa de Leste viveram.
Hadley Freeman transforma esta saga familiar num quebra-cabeças literário, numa empolgante aventura de escavação na qual o leitor participa avidamente, percorrendo três diferentes gerações, um século e duas Guerras Mundiais. O resultado é íntimo e comovente, resultado de uma pesquisa meticulosa, que transforma “Segredos Estilhaçados” num livro de memórias que se lê como um thriller literário. Um dos grandes livros de 2021 com edição nacional.
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