O terror não é um género muito cultivado na literatura portuguesa, mas Mafalda Santos não se deixou intimidar por esse facto, mergulhando nas profundezas negras da psique humana e emergindo com uma primeira obra surpreendente: “Conta-me, Escuridão” (Suma de Letras, 2021), uma colectânea de oito contos ilustrados por David Benasulin.
Nesta entrevista, a autora fala-nos das suas fontes de inspiração, da atracção pelo “lado desconhecido que existe dentro de cada um de nós” e do recurso ao sobrenatural como metáfora. Através das suas palavras, entrevemos o talento que lhe permite transportar-nos para realidades simultaneamente assustadoras e fascinantes. Afinal, por trás do jogo constante de luzes e sombras no nosso íntimo, “não há nada mais humano do que sentir medo”.
Como é explicado em nota, as narrativas de “Conta-me, Escuridão” e as respectivas ilustrações foram inspiradas em quadros, revelados nas últimas páginas do livro. Qual foi o critério que presidiu à escolha desses quadros? Será correcto dizer que Guillermo Lorca García, o artista mais vezes referido, é um favorito?
A escolha dos quadros começou como um jogo. A possibilidade infinita de uma imagem conter uma história com passado e futuro para além de si mesma. Revelou-se um exercício criativo extraordinário e altamente estimulante. Procurar numa imagem, o que ela diz mas não mostra, ver o que está para lá do óbvio. Os quadros escolhidos obedeceram ao critério do nosso gosto pessoal (meu e do David), mas que tinham em comum ilustrarem situações, lugares e personagens que viveriam bem no universo do realismo mágico de autores como Gabriel Garcia Márquez ou José Saramago. Um pé no mundo real e outro naquele universo, tão perturbador como fascinante, onde nada é impossível. O pintor chileno Guillermo Lorca García, que já tivemos o prazer de conhecer pessoalmente, transporta esse imaginário para todos os seus quadros. Poderia facilmente escrever um conto para cada uma das suas obras, tal é a riqueza narrativa que podemos observar em cada uma delas.
Tendo em consideração que a fantasia negra e o terror não são géneros habitualmente explorados na ficção portuguesa, o que a atraiu neles?
O terror e o realismo mágico sempre foram géneros de que gostei muito, fosse na literatura ou no cinema. Seduz-me a ideia de múltiplas possibilidades para a mesma coisa. Se algo não fosse assim, como poderia ser? E para esta pergunta podem existir milhares de respostas e caminhos diferentes. Seduz-me o lado desconhecido que existe dentro de cada um de nós, ele manifesta-se em sonhos, em fobias, em ansiedades em desejos. Se há zona segura e interessante para o explorar é sem dúvida a literatura. De facto, o terror não é um género comum na literatura portuguesa, mas penso que é um género que atrai leitores em todo o mundo. Não há nada mais humano do que sentir medo, é uma característica primordial de todos os seres, precisamos do medo para sobreviver. Sempre gostei muito de ler contos, que pela sua brevidade e síntese, têm o poder de trazer uma satisfação rápida ao leitor, que pode ser muito prazerosa.
Alguns destes textos parecem remeter para a cultura popular portuguesa, outros para autores clássicos como Edgar Allan Poe. O que mais nos pode contar acerca das suas fontes de inspiração literária?
A cultura popular e o folclore português são riquíssimos neste tipo de histórias e lendas, e claro que também o conhecido Edgar Allan Poe foi mestre na construção de contos de terror. Mas quando penso nas minhas referências literárias, que conduziram a minha inspiração para este lugar onde o obscuro toca fantasia, não posso deixar de mencionar José Saramago, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Gabriel Garcia Márquez, Robert Louis Stevenson ou Henry James.
Além da literatura e dos quadros referidos no livro, existiram outras fontes de inspiração (cinematográficas ou musicais, por exemplo)?
Ora bem… por onde começar? Sempre adorei o cinema de terror e suspense, por isso podia ficar aqui algum tempo… Assim sem pensar muito, destaco os filmes “Shining” e “Misery”, ambos feitos a partir de romances de Stephen King, “O Labirinto do Fauno”, de Gillermo del Toro, “Get Out” e “Us”, de Jordan Peele, “Hereditário”, de Ari Aster, e “I Saw the Devil”, de Jee-woon Kim.
Os contos já são acompanhados por imagens. Que banda sonora escolheria para acompanhar a acção?
Escrever a ouvir música ajuda-me a encontrar o ambiente certo para o tom narrativa que quero criar. Todos os contos presentes neste livro foram escritos ao som de Philip Glass.
A maioria destes contos é marcada por elementos sobrenaturais, mas há casos em que isso não acontece, ficando aberto à interpretação. Que tipo de terror considera mais assustador: o sobrenatural, o de origem humana, ou outro?
O pior horror tem origem humana. Somos capazes das piores atrocidades. Ao longo da história, e por vezes demais, os Homens aliaram a inteligência à maldade, nas formas de exploração de outros, de intolerância, de sadismo, de tortura, de guerra. Não existe pior mal do que aquele que é premeditado e tem objectivos. A outra forma de horror tem origem natural, com os terramotos, os vulcões, etc, e não o podemos controlar. Não acredito em sobrenatural. Ele serve-me um propósito de metáfora, serve para dar asas ao indizível, ao impalpável, à criação que desconhece a fronteira do possível.
Em regra, estas narrativas decorrem em cenários caracterizados por alguma forma de isolamento. Considera o isolamento importante para a suspensão da descrença? Em termos de escrita, sente necessidade de isolamento para trabalhar, ou consegue conceber histórias assim no meio da azáfama do quotidiano?
Há quem tema a solidão mais do que qualquer outra coisa. O isolamento deixa-nos vulneráveis, mais susceptíveis a ameaças exteriores e interiores, mas também mais abertos e disponíveis a ter um diálogo interno profundo. Eu só consigo escrever quando estou sozinha. John Donne escreveu que “nenhum homem é uma ilha isolada”, mas e se fosse, pergunto eu? Se começasse assim uma história: Um homem acorda e é uma ilha isolada, que flutua… Não é isso que são afinal todos os grandes protagonistas da história da literatura? Ilhas isoladas que flutuam?
A atmosfera geral do livro é bastante sombria e desprovida de figuras heroicas. O que mais se aproxima disso é uma criança de dez anos que parte à procura da irmã, em “O Mal por Detrás da Montanha”. Face à omnipresença da escuridão, onde podemos encontrar luz?
Não existe luz sem escuridão, e vice-versa. Assim como não existem heróis sem um lado negro ou corruptível, ou vilões sem um lado bom. Somos todos uma amálgama dessa contradição. No “Conta-me, Escuridão” encontramos a luz na inocência das personagens que nada fizeram para encontrar o destino que tiveram e na consciência atormentada de outras, mas também na própria poesia das palavras. Mesmo quando o tema é negro, acredito que a melodia gerada pelas palavras, a forma como elas se encadeiam umas nas outras, os seus duplos sentidos, tem o poder iluminar o leitor.
O que pode revelar acerca dos seus projectos para o futuro?
Terminei de escrever um romance de ficção, que espero possa em breve ver a luz do dia. Estou bastante satisfeita, mas veremos. Está nas mãos dos deuses editoriais!
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