“Nunca me libertarei dela. Está-me entranhada na medula e nunca lhe serei imune. Que diria o marido da Purvi acerca de um parasita tão evoluído que faz da própria prole o seu hospedeiro? Há qualquer coisa de engenhoso em consumirmos o que se agarra a nós.”
Avni Doshi serve-nos, em “Açúcar Queimado” (D. Quixote, 2021), um livro elaborado, onde o requinte de certas especiarias se cruza com a acidez de algo já azedo. Se isto fosse uma receita, o q.b. teria perdido as proporções logo ao primeiro ingrediente, e a mão que acrescenta uma pitada disto ou daquilo seria uma mão alheada de quaisquer confecções equilibradas. Ou, então, poderíamos aplicar aquela velha frase: a vingança é um prato que se serve frio. Se bem que, aqui, já tenha esfriado tanto que o sabor não já se mantém.
A mãe da protagonista está a perder a(s) memória(s). As boas e as más. E Antara, a narradora, já não conseguirá o ajuste de contas que sempre achou que a vida lhe reservaria. Como viver e reviver no tempo que urge e se desmorona?
“Talvez o problema seja estarmos ambas do mesmo lado, a contemplar o vazio. Talvez tenhamos fome das mesmas coisas e a soma de nós as duas duplique essa sensação. E talvez tudo se resuma a isto, o buraco no âmago da questão, uma deformidade da qual nunca poderemos recuperar.”
Uma mulher que se considera imune a um determinado grau de desconforto assume deformidades, defeitos, inseguranças e uma ansiedade galopante, perante a “degeneração humana que avança aos solavancos, mas não faz marcha-atrás”. É assim a doença da mãe: “Diagramas mostram o tecido cerebral submerso em placas, um caos de farrapos, presos numa grelha à qual não pertencem”.
Esgotada e também sem sentimentos de pertença, até na relação conjugal com Dilip, Antara sente-se a perder o controlo e a assumir as diferenças que espelham uma educação que gera um fosso, tanto entre ela e a mãe como, depois, entre ela e o marido – ou até com a sogra. Mas também com um país, seja o de origem ou o de emigração. Antara é, por tudo isto, uma mulher fragmentada e em convulsão.
“Se as nossas conversas fossem itinerários, mostrar-nos-iam sempre a regressar a esta rua sem saída e vazia, da qual não conseguimos fugir.”
Antara é, também, uma mulher hiper-consciente e introspectiva, cheia de questões. Na sua cabeça mora uma multidão: “(…) e quem era eu -, e seria eu sequer capaz de reconhecer o que convinha disfarçar e o que mais valia assumir?”.
“Açúcar Queimado” é, também, sobre a relação com o corpo, no qual o desapego maternal deixou marcas e influenciou a adolescência e a maternidade, aqui descritas num tom visceral, quase em jeito de purga.
“O meu estômago não se queixa, apenas fala quando não é a sua vez. Fá-lo sempre durante exames silenciosos, jantares, nas pausas dos filmes de suspense; diz sempre as coisas que eu não sou capaz de dizer, quando eventualmente tenho fome, mas uma fome de outra espécie.”
Avni Doshi construiu um enredo que quer fazer frente ao esquecimento, expondo mulheres em luta por estabelecer uma conexão com o passado e apaziguar o tumulto que julgavam trancado pelo passar dos anos.
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