Ao longo de mais de quarenta quilómetros do litoral português estende-se a ria de Aveiro, um território peculiar não só em termos geológicos e biológicos mas, também, devido às “dezenas de estórias, tradições e costumes” que aí se desenvolveram. Os pedaços de terra que assomaram à superfície dessas águas são o tema de “Ilhas da Ria” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2021), mais um volume da colecção Retratos da Fundação.
A autora, Maria José Santana, é jornalista e cresceu à beira da ria, pelo que se encontra numa excelente posição para fazer justiça às suas ilhas, perante o triste abandono a que parecem votadas.
O livro começa por explicar a história destas formações geológicas, bem como a razão pela qual a expressão “ria de Aveiro”, cunhada pela tradição, não é cientificamente correcta – seria mais adequado chamar-lhe laguna, pois trata-se de um “quase lago” com pouca comunicação com o mar. Apesar da escassez de registos históricos, a autora esforça-se por reconstituir o povoamento e a exploração das ilhas, situando a sua época dourada no século XVI, quando Aveiro viveu “o seu maior desenvolvimento enquanto porto de mar”. Paralelamente, cita artistas que se deixaram encantar pela região e descreve a sua inegável importância ecológica.
Todavia, embora toda esta informação seja interessante, o melhor da obra é a compilação de testemunhos de gente que viveu nas ilhas e que, mesmo tendo conhecido ventos e marés desfavoráveis, por vezes, “parece ter a água salgada da ria a correr-lhe no sangue”. Através das suas vozes, descobrimos como as ilhas representaram pequenas estâncias de veraneio para uns e campos de trabalho árduo para outros, proporcionando, em ambos os casos, vivências que marcaram gerações. Algumas, com terrenos férteis para a agricultura e bons para a criação de gado, além das típicas salinas, chegaram a ser auto-sustentáveis.
Infelizmente, houve um momento em que se rompeu o ciclo de alternância entre períodos de prosperidade e retrocessos. Da anterior ocupação, quase só restam memórias, face à miríade de factores humanos e ambientais que se conjugaram na degradação do território. Alguns associam as dragagens no porto de Aveiro ao aumento da amplitude das marés. Seja qual for a causa, a erosão e o avanço das águas ameaçam a própria existência das ilhas. Simultaneamente, assistiu-se ao abandono dos terrenos, à migração da mão-de-obra para paragens onde era mais fácil ganhar a vida e a uma série de furtos e actos gratuitos de destruição de propriedades que agora estão em ruínas. Há “partilhas por fazer, novas gerações de proprietários que não têm a mínima ligação emocional aos bens herdados e que apenas aguardam por uma boa proposta de compra”, gente cansada de contrariar o vandalismo e um aparente desinteresse do Estado.
Muitos defendem que é necessária uma intervenção urgente, a qual poderia consistir no desenvolvimento de projectos de turismo de natureza compatíveis com o ecossistema, talvez aliados à investigação científica. Esta obra sucinta, detentora de uma beleza cristalina, que nos sensibiliza para a necessidade de recuperar estas áreas de elevado potencial, é um valioso contributo para tal transformação. Nas palavras da autora, “seja qual for o destino que vier a ser definido para estes pequenos paraísos naturais, há algo que parece ser inquestionável: urge travar a degradação que avança a olhos vistos, sob pena de os danos de todos estes anos serem irreparáveis”.
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