Janet Skeslien Charles cresceu a amar bibliotecas e livrarias. Mesmo que não o declarasse por escrito, tal facto é óbvio desde o início do seu livro “A Biblioteca de Paris” (Suma de Letras, 2021), pois só uma bibliófila conseguiria retratar outros bibliófilos tão fielmente e com tanto carinho.
A obra é baseada nos actos heróicos dos funcionários da Biblioteca Americana de Paris durante a Segunda Guerra Mundial. Sendo muitos deles estrangeiros em França, enfrentaram a pressão para voltarem aos países de origem, optando por manter-se nos seus postos e criando até novos serviços, como o envio de livros para cantinas e hospitais de campanha, para oferecer um escape aos soldados franceses e britânicos. Após a ocupação nazi, mantiveram a biblioteca aberta, apesar dos constrangimentos ao seu funcionamento, que incluíam o banimento de certos textos e as ameaças ao pessoal de nações consideradas inimigas. Quando a frequência de bibliotecas se tornou uma das várias actividades vedadas aos judeus, resistiram às autoridades com uma rede secreta de entrega de livros ao domicílio, até os próprios leitores judeus começarem a desaparecer.
A narrativa desenrola-se entre dois tempos e dois espaços: Paris em 1939 e Froid, uma pequena cidade no estado norte-americano do Montana, em 1983. Na capital francesa, pouco antes da guerra, conhecemos a jovem Odile e vemos como conquista um emprego na Biblioteca Americana de Paris, onde se sente em casa. Na sua opinião, a camaradagem entre funcionários e frequentadores habituais gera “uma verdadeira comunidade” que transforma o edifício em algo “mais do que tijolo e livros: a sua argamassa era constituída por pessoas que cuidavam umas das outras”. Mas por mais que adore os livros e as histórias neles contidas, Odile também é uma mulher prática, para quem o salário representa uma protecção contra um destino semelhante ao de uma tia, que morreu desvalida depois de abandonada pela família.
No Montana, em plena guerra fria, encontramos Lily, uma adolescente solitária, fascinada pela vizinha idosa, que se chama Odile e veio de França como noiva de guerra de um soldado americano. Já viúva, habita numa casa onde livros cobrem as paredes, a anos-luz do resto da comunidade, que nunca deixou de considerá-la estrangeira. O facto de ser a única pessoa da terra com conhecimento do mundo para além dos seus arredores atrai Lily, e a relação que nasce entre elas determinará o curso do resto das suas vidas.
Entrelaçando datas e perspectivas, com uma acção bem ritmada e diálogos vivos, a autora reconstitui a saga de Odile e dos seus colegas, vários dos quais tiveram existência real – até podemos ver fotografias suas no livro. Felizmente para a construção da história, nenhuma das duas protagonistas é uma heroína infalível. O facto de ambas terem facetas sombrias e cometerem erros humaniza-as, fazendo os leitores apreciarem ainda mais a coragem dos indivíduos que desafiaram os nazis – e os colaboracionistas franceses – com a sua crença no poder dos livros, “porque nenhuma outra coisa possui aquela mística capacidade de nos fazer ver com os olhos de outras pessoas”.
Sem Comentários